O país se acostumou a ver o Supremo Tribunal Federal nas manchetes de jornal, como uma corte que julga ações penais, questões do varejo político, além de uma enorme variedade de temas relevantes para a economia e administração do país.
Nos últimos anos, nada de verdadeiramente importante parece ter sido decidido no Brasil sem a participação do STF. Diante desse contexto, é razoável que haja críticas ao excesso de poder do Tribunal e à suposta assunção, por ele, de competências que seriam próprias, sobretudo, do Poder Legislativo.
Essas críticas não se aplicam, todavia, ao julgamento, ainda sem data prevista para ocorrer, da ADPF n. 442. A ação, proposta pelo PSOL, requer que a Corte declare a inconstitucionalidade, ou seja, a invalidade no atual regime constitucional, da criminalização do aborto nas 12 primeiras semanas de gestação. Alega-se, em síntese, que a norma penal que disciplina a matéria, editada em 1940, viola direitos fundamentais das mulheres, em especial à autonomia e à integridade física e psíquica.
Em casos como esse, em que é invocada a ofensa, pelo legislador, a direitos fundamentais de uma minoria política —como são as mulheres, sub-representadas historicamente em todas as instâncias de poder—, a tomada de decisão pelo STF, ainda que invalidando a regra estabelecida pelo Poder Legislativo, não configura novidade ou excesso ao admitido, há décadas, em nosso sistema político-constitucional.
A separação de Poderes e a compreensão do regime democrático no Brasil, assim como na maior parte do mundo, não são contrárias ao exercício do chamado controle de constitucionalidade de leis por um Tribunal Constitucional ou Corte Suprema. Entende-se, em suma, que esse controle é peça-chave para conter abusos ou falhas na representação política, assim como para garantir direitos fundamentais de grupos historicamente subordinados.
No que diz respeito à controvérsia sobre a (des)criminalização do aborto no Brasil, os dois elementos acima referidos se mostram presentes. Há histórica dificuldade de colocação da matéria na pauta política do país, quebrada poucas vezes nas últimas décadas, mais por atuação do Supremo do que do próprio Congresso Nacional.
Sem perspectiva de incremento, em curto prazo, da participação feminina na política; e, por outro lado, com o aumento esperado do conservadorismo moral no Legislativo brasileiro, a probabilidade de se instalar um verdadeiro e sério debate sobre a matéria segue reduzida.
Ademais, há robustas evidências de que a criminalização do aborto atinge diversos e relevantíssimos direitos fundamentais das mulheres. Ela marginaliza as gestantes que optam pela medida, com impacto desproporcional sobre a saúde de mulheres pobres e negras, além de transmitir a todas elas a mensagem de que não podem tomar decisões autônomas sobre a própria vida.
Em outras palavras, a criminalização diz às brasileiras que elas possuem uma função privada e doméstica, de cuidado familiar mais importante do que todas as demais que possam desejar para si, devendo acatar o chamado, natural ou divino, de serem mães, quando quer que ele se manifeste —tenha essa mulher 15 ou 40 anos, uma vida a começar ou uma família já constituída, com filhos a serem sustentados e cuidados.
Dessa forma, argumentar que o STF não detém legitimidade para tratar da descriminalização do aborto parece ser um subterfúgio para escapar à discussão de mérito da questão, que, aliás, foi realizada por diversos Tribunais Constitucionais e Cortes Supremas do mundo.
É papel do Supremo deliberar sobre o direito ao aborto? SIM
De volta aos direitos fundamentais
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