Descrição de chapéu
Henrique Goldman

O Oriente Médio dentro de mim

Espaço para o caminho do meio está ficando menor

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O cineasta Henrique Goldman, em evento em São Paulo em 2012
O cineasta Henrique Goldman, em evento em São Paulo em 2012 - Zanone Fraissat - 11.set.12/Folhapress

Há anos debato sobre o conflito árabe-israelense com dois amigos. Um é o Nat, médico inglês e, como eu, judeu. A outra, Cesarina, uma arquiteta italiana que, também como eu, há muitos anos adotou Londres como sua pátria.

Por princípio, Nat simplesmente não admite a menor possibilidade de que Israel faça algo de errado —mesmo considerando a ocupação ilegal de territórios palestinos e o desrespeito frequente aos mais básicos direitos humanos.

Arrogante e vaidoso, acredita numa espécie de bom-mocismo segundo o qual nós, judeus, mais bem educados e civilizados do que os bárbaros árabes, sempre agimos em nome do bem. Neto de sobreviventes do Holocausto, acha que, em nome da própria sobrevivência, tudo se justifica.

Ele me ironiza dizendo que a paz é um sonho muito lindo, mas, nesse caso, totalmente impossível. Os árabes querem destruir Israel, e eu sou só um sonhador ingênuo que se esqueceu de crescer, manipulado por uma mídia comprada com petrodólares do golfo Pérsico.

Do outro lado, há o antissemitismo enrustido da Cesarina, típico da esquerda histórica europeia. Ela não perde uma oportunidade de associar os judeus com o sistema bancário mundial responsável pela exploração de pobres e oprimidos.

Cita sempre o "lobby judaico", e a palavra "sionista" é uma espécie de palavrão —mas ela nem conhece o seu significado. Muito mais do que criticar governos israelenses e determinadas políticas, é o próprio direito de existir de Israel a ser chamado por ela constantemente em questão. 

Ela nunca posta notícias sobre a anexação da Crimeia ou a repressão turca no Curdistão nem me culpa pelas 60 mil mortes violentas anuais que ocorrem no Brasil, mas se apressa em esfregar o sangue de vítimas palestinas no meu nariz judaico.

Questiono o que pode estar por trás desse moralismo seletivo, mas ela argumenta que não é antissemita. Longe disso. São os judeus, a maioria paranoicos, que confundem críticas a Israel com antissemitismo.

Na semana passada, os dois debates ficaram particularmente doídos. Nat escreveu para cobrar —em tom rancoroso— uma tomada de posição da minha parte quanto às frequentes acusações de antissemitismo feitas ao Partido Trabalhista britânico, ao qual me filiei em 2015.

Enquanto o Parlamento se mobiliza e debate sobre o "brexit" —um momento histórico e crucial, no qual se está decidindo o futuro do Reino Unido e da Europa—, a cúpula do partido de centro-esquerda liderado por Jeremy Corbyn decidiu amenizar, em seus estatutos, termos adotados internacionalmente para definir o que pode ou não ser considerado antissemita.

Resumindo: é uma prioridade máxima para Corbyn que eu possa ser livremente insultado por um outro membro do partido sendo, por exemplo, chamado de sionista nazista, sem que o agressor seja necessariamente punido pela legenda.

Exatamente no mesmo dia, Cesarina me mandou, com uma mensagem igualmente raivosa, uma reportagem relatando a aprovação, pelo Parlamento israelense, de uma lei que torna o hebraico a única língua oficial do Estado, estabelecendo ao mesmo tempo que Israel é uma terra unicamente de judeus, em detrimento da minoria de 20% da população que é árabe-israelense e se sente marginalizada.

É mais um prego no caixão da democracia israelense que, a exemplo do que acontece nos EUA, no Brasil e pelo mundo afora, foi sequestrada pela extrema direita e por fundamentalismos religiosos.

Por enquanto, interrompo os debates. Aqui no meio, o espaço está ficando cada vez menor, e é muito frustrante falar sozinho.

Henrique Goldman

Cineasta, dirigirá clipe de uma faixa que estará no próximo trabalho de Brian Eno

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