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Luciana Temer

A decisão do STF de considerar ilegal a educação domiciliar foi correta? SIM

Dos riscos de que ninguém falou

A advogada Luciana Temer, em seminário realizado pela Folha
A advogada Luciana Temer, em seminário realizado pela Folha - Reinaldo Canato - 18.mai.18/Folhapress

Segundo números da Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar), há cerca de 7.500 famílias educando seus filhos em casa no Brasil. O sistema é legalmente admitido em mais de 60 países e, por aqui, tramita no Congresso Nacional o PL 3.179/2012, que pretende regularizar a questão.

Ao julgar o recurso extraordinário n° 888.815, o STF decidiu o caso de uma dessas famílias, que brigava pelo direito de educar a filha em casa. O relator do processo, ministro Luís Roberto Barroso, votou pelo direito à prática do ensino domiciliar, mas foi voto vencido.

A maioria acompanhou o voto do ministro Alexandre de Moraes, que entendeu constitucionalmente possível, mas dependente de regulamentação. Já os ministros Fux e Lewandowski entenderam que a educação fornecida exclusivamente pela família é inconstitucional.

Muitos são os argumentos apresentados, pró e contra essa prática, mas ninguém toca em um ponto extremamente sensível, que diz respeito à proteção da criança em relação à própria família. Explico. Para além de um lugar de aprendizagem e convivência, a escola é, muitas vezes, o único local no qual a criança ou adolescente encontra um adulto não ligado à sua família, para quem pode pedir socorro em uma situação de violência familiar. 

Às vezes o professor, convivendo cotidianamente, percebe sinais dessa violência (nem sempre visíveis) e conversa com o aluno, que se sente encorajado a falar.

Essa é a narrativa que nós temos ouvido nas rodas de conversa que durante todo este ano estamos fazendo com professores da rede pública de ensino, em razão de uma parceria do Instituto Liberta (cuja missão é o enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil) com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Não há uma só roda que realizamos na qual histórias de violência intrafamiliar e os desafios da escola para lidar com essa situação não apareçam.

Infelizmente, não há no Brasil dados que mostrem quantas denúncias de violência contra crianças chegaram por meio da escola.

Mas o que poderia ser apenas uma percepção equivocada se confirma nos EUA por meio de uma pesquisa realizada pela Universidade de Wisconsin. Segundo dados da Home School Legal Defense Association, o número de estudantes domiciliares no país cresceu 75% desde 1999 e já compõem 4% da população em idade escolar.

Em face disso, Barbara Knox, professora associada da Escola de Medicina e Saúde Pública da universidade, coordenou um estudo sobre casos graves de violência infantil intrafamiliar e constatou que 47% das vítimas tinham sido retiradas da escola pública para terem aulas em casa, e 29% delas nunca tinham frequentado a escola.

A pesquisa sugere que as crianças educadas em casa correm maior risco de abuso infantil do que as matriculadas no sistema regular.

Entendemos que o STF acertou ao proibir a prática por falta de regulamentação, mas provavelmente terá que enfrentar novamente o tema caso o projeto de lei em tramitação seja aprovado.

É verdade que a Constituição garante o direito à liberdade, inclusive de os pais educarem seus filhos, mas também é verdade que impõe à sociedade em geral e ao Estado, em especial, o dever de proteger suas crianças, ainda que de suas próprias famílias. E aí a importância do não isolamento e do convívio escolar.

Afinal, você não pode torturar crianças impunemente e, se elas frequentam a escola, alguém vai notar...

Luciana Temer

Advogada, presidente do Instituto Liberta e professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e da Uninove

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