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Alberto Zacharias Toron e Luisa Moraes Abreu Ferreira

João de Deus: entre o linchamento e o julgamento

Pede-se pouco: o direito de ele ser, de fato, ouvido

O médium João de Deus deixa a delegacia onde prestou depoimento, em Goiânia - Walterson Rosa - 16.dez.18/Folhapress
Alberto Zacharias Toron e Luisa Moraes Abreu Ferreira

O caso João de Deus —com todos os seus contornos de fé religiosa, poderes mediúnicos e testemunhos de abusos sexuais— de forma incerta veio para pôr à prova nossa real crença na democracia e nos direitos individuais. Principalmente neste momento em que o Brasil tem exibido uma faceta mais punitiva em diversos setores.

A crença genuína, imparcial, sem preconceitos e ilimitada no Estado de Direito é testada em casos limite, como este de João de Deus, porque aqui um pilar fundamental dos direitos individuais está sendo negado: o direito de defesa.

Até hoje, tivemos acesso a menos de dez das mais de 500 denúncias supostamente apresentadas contra João de Deus. Em nenhum momento vimos o relatório do Coaf, o qual demonstraria a movimentação de R$ 35 milhões, que é uma das justificativas da sua prisão preventiva.

Com muito custo, conseguimos vencer a burocracia do presídio e obtivemos uma procuração específica para ter acesso aos extratos bancários de João de Deus.

Resultado: o dinheiro continua aplicado como sempre esteve. Não houve nenhum resgate de R$ 35 milhões. Alertamos a imprensa e todos os juízes responsáveis pelo caso. A informação foi ignorada, posta debaixo do tapete, porque não se coaduna com a versão de que João de Deus se preparava para fugir do país.

Como todos puderam ver, João de Deus se entregou à polícia sem nenhuma resistência. Nunca pôs um pé fora dos arredores de Abadiânia, onde mora.

Vejam que está na ordem do dia deste país o debate relativo à prisão logo após o julgamento em segunda instância ou se é necessário esperar o trânsito em julgado antes de se prender. O contraste é claro: João de Deus não foi julgado nem em primeira instância, nem sequer foi acusado formalmente. E está preso, mesmo tendo se comprometido a cumprir o que for necessário para manter, enquanto espera o julgamento, total transparência em suas atividades espirituais, que têm dado tanto alívio a milhares de pessoas que sofrem.

Repete-se neste caso, como tem sido comum não só no Brasil, a condenação por "clamor popular", a condenação sem julgamento, sem direito de defesa, sem contraponto. Um rito jurídico, vale lembrar, tem por objetivo a procura da verdade e uma resposta justa em ambiente mais sereno. Aqui, ao contrário, forma-se um conjunto explosivo: o acusado, mesmo antes de ser julgado, já é considerado um bandido perigoso, e seu advogado não passa de um ser abjeto, que aceitou a causa do criminoso por dinheiro.

Os linchamentos são sempre potencialmente injustos e levam a sociedade a encontrar um bode expiatório em indivíduos, em vez de se dedicar seriamente à tão necessária transformação das relações sociais de poder. Nada é mais perigoso para a democracia e para o Estado de Direito do que o vilipêndio ao direito de defesa, fundado em uma difusa ânsia pela condenação, pela prisão, por um espetáculo que satisfaça os mais íntimos desejos, ainda que legítimos.

Para a Justiça (isso vale muito para a mídia), "ouvir o outro lado", em qualquer circunstância, seja a acusação que for, por alarmante que seja, é muito mais do que uma nota no pé de reportagem dizendo: "o acusado nega as acusações".

O justo é ir atrás, investigar, se importar de verdade em ouvir o acusado, porque é assim que se chega o mais próximo possível da verdade, mesmo que ao final o resultado seja a condenação que muitos esperavam. Mas não antes, não condenação antecipada, sem defesa. 

Pede-se pouco neste caso: o direito de João de Deus ser efetivamente ouvido antes de ser julgado (call and hear). João de Deus foi ouvido uma única vez, tarde da noite, sobre denúncias que conheceu poucos minutos antes de sua oitiva e, em seguida, foi preso. E seus defensores, do lado de fora, têm a dura tarefa de defendê-lo de acusações as quais desconhecem e de movimentações bancárias que nunca viram, enquanto as provas que favorecem a defesa são ignoradas.

Querer impedir o exercício de boas defesas diante da avassaladora ansiedade pela condenação, além de ilegal, é covarde e imoral. Quando a sociedade, o Estado e a mídia voltam suas baterias contra o acusado, resta-lhe o advogado de defesa, muitas vezes o último e único a escutá-lo, ouvir sua versão e levá-lo a juízo para um julgamento justo.

Alberto Zacharias Toron e Luisa Moraes Abreu Ferreira

Advogado de João de Deus, mestre e doutor em direito (USP) e professor de processo penal da FAAP; advogada de João de Deus e mestre em direito penal pela USP

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