As decisões concretas de Jair Bolsonaro, com exceções cada vez mais raras, são guiadas pelo objetivo de proteger suas tropas —ele próprio, família, aliados e corporações do serviço público, em particular policiais e Forças Armadas.
Publicada na quinta-feira (14), a medida provisória 966, que pretende aumentar a imunidade de servidores contra processos civis e administrativos, é um exemplo dessa exorbitância corporativista.
Entre especialistas do direto, o texto foi considerado de baixa qualidade técnica e vago o bastante para, no limite, conceder carta branca a funcionários do Estado —e talvez também a Bolsonaro e seus auxiliares de primeiro escalão.
A MP determina que, no enfrentamento da pandemia de Covid-19 e seus impactos sociais e econômicos, agentes públicos somente poderão ser responsabilizados “se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas”.
Diz ainda o texto que o “mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”. Soa como um salvo-conduto, em que provas de ação daninha são tornadas quase irrelevantes.
A responsabilidade deixa de ser objetiva? Consultados em reserva, ministros do Supremo Tribunal Federal consideram que a medida atenta contra a Constituição.
Os critérios de enquadramento das atitudes dos servidores se mostram fluidos. Institui-se um princípio de irresponsabilidade jurídica e, em decorrência, um incentivo para o cometimento de irregularidades, dada a frouxidão do dispositivo legal baixado por Bolsonaro.
Parece inviável, por exemplo, comprovar o que constitui um erro “grosseiro”. Trata-se de “erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”, lê-se na MP. A uma subjetividade essencial são juntados predicados vaporosos.
Com boa vontade, pode-se dizer que a MP parece derivada, em tese, da boa intenção de evitar a paralisia decisória devido a rigorismos indevidos na fiscalização de atos de agentes públicos.
O mesmo objetivo deu origem à controversa lei 13.655/18, de teor semelhante —contestada pela comunidade jurídica e por órgãos de controle, bem como alvo de questionamento no Supremo.
Se pode existir o problema, a emenda piorou o soneto, com o acréscimo de insegurança jurídica.
Não será por meio de mais uma tentativa de estabelecer um excludente de ilicitude —para usar um termo da agenda policial cara a Bolsonaro— que vão se corrigir falhas legais ou punições extravagantes de funcionários públicos.
No fim das contas, o presidente mexeu de modo açodado com uma legislação estabelecida e orientada pela Constituição. Causa indignação, mas não espanto.
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