Em meio à pior pandemia do último século, vivemos uma crise política que provoca efeitos deletérios à saúde de nossa democracia e contribui para a deterioração da saúde física e psíquica de milhares de brasileiros.
As causas dessa crise política são muitas e qualquer tentativa de explicação unifacetada estará fadada ao fracasso. Porém, arrisco dizer que uma das principais causas —se não a principal— é o fato de que, nas últimas eleições presidenciais, o Brasil permitiu que se sagrasse vencedor um projeto de poder que glorifica a violência e que nada tem a ver com um projeto de política. Jair Bolsonaro está fazendo exatamente aquilo que prometeu: empreende esforços para destruir nossas instituições democráticas por dentro e, juntamente com esse esforço, apaga o pouco de dignidade de que a política ainda gozava entre nós.
Tendo em vista que Bolsonaro nunca demonstrou apreço às instituições democráticas e muito menos à política, a escalada de violência de seu discurso (que já era assustador durante a campanha) pouco surpreende. O que ainda causa espanto, mesmo passado um ano e meio das últimas eleições, é saber que mais de 57 milhões de brasileiros endossaram esse discurso, seja porque concordaram abertamente com ele, seja porque consideraram que o risco de se eleger um outsider (no sentido de um candidato que se posiciona abertamente contra o establishment político tradicional e a chamada “velha política”) valia a pena em prol do “mercado”, do “combate à corrupção” ou de um determinado conceito de moral que exclui toda e qualquer possibilidade de diálogo.
A eleição democrática de uma figura antidemocrática como Bolsonaro é um triste sinal de que o brasileiro, em média, também não acredita na "Política". Aqui, a grafia com “P” maiúsculo aqui não é por acaso. Não me refiro à política cotidiana dos partidos, dos corredores de Brasília ou da campanha eleitoral. Refiro-me à política que é uma das dimensões essenciais do ser humano e que poderia ser definida como a capacidade de se decidir em conjunto acerca do destino da coisa comum (a "res publica") por meio do diálogo, da deliberação e do convencimento racional do outro.
A clássica lição aristotélica de que “o homem é um animal político”, afinal, decorre da característica exclusiva aos seres humanos de possuírem "logos", termo grego que, na filosofia clássica, pode significar tanto razão quanto linguagem. Ou seja, a aptidão do homem para a comunicação racional, exatamente o tipo de comunicação que permite o desenvolvimento da política, não é uma característica acidental ao ser humano, mas sim uma parte de sua essência mais íntima.
Essa política perde totalmente o espaço no momento em que eu não reconheço a dignidade do outro e não lhe concedo a oportunidade de participar comigo do debate racional. A eleição de Bolsonaro é um sinal de descrença na política com “P” maiúsculo porque essa política, baseada que é no diálogo e no respeito ao interlocutor, termina exatamente quando começa a violência, baseada no monólogo e na crença de que “nós” somos superiores a “eles”.
Embora a violência seja vista como um dos instrumentos da política em momentos excepcionais —exemplo maior são as guerras e as revoluções armadas—, pode-se dizer que ela é um fenômeno oposto a essa política a que me refiro, uma vez que a política tem como objetivo construir um futuro comum baseado na dignidade de todos, enquanto a violência é por definição destrutiva e discriminatória.
O problema da descrença na política vai muito além da eleição de outsiders que não têm o mínimo respeito pelo cargo que ocupam. A perda de confiança na capacidade do diálogo abre caminho para a destruição de direitos e liberdades que, de tão incorporados à nossa vida, quase nos parecem naturais, mas em verdade são conquistas políticas das mulheres e homens que nos precederam.
Ao contrário das leis da física ou das verdades científicas, as conquistas políticas podem ser enfraquecidas pelo discurso e aniquiladas pela violência. Daí o enorme perigo do esvaziamento da política, dando espaço a projetos de poder que não se preocupam com a ação concertada e que não respeitam a dignidade do outro.
Penso que nossas instituições democráticas ainda têm a capacidade de nos tirar da atual crise política, mas não sairemos dela ilesos. Para que não voltemos a ter crises recorrentes e cada vez mais graves, precisamos restaurar a dignidade da política, o que se inicia pela restauração do respeito à vida, à dignidade e às opiniões do outro.
Precisamos falar sobre educação política dentro e fora das escolas. Precisamos ensinar a tolerância com o diferente e resgatar o potencial transformador do diálogo. Enfim, precisamos acreditar na política com “P” maiúsculo, pois, não acreditar nessa política, é, no limite, não acreditar no potencial do ser humano.
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