Descrição de chapéu
Mariana Boujikian

Quando a Armênia encontra a Palestina

É preciso conhecer a cara assustadora do passado para enxergá-lo com clareza quando se reapresenta

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Mariana Boujikian

Cientista social e professora, é mestra em antropologia social (USP); autora de “Memórias de um Genocídio” (Tirant Lo Blanch)

Há uma fotografia que me perturba. Ela mostra crianças descalças e com os cabelos raspados. As vestimentas são simples. Os braços finos e as pernas mirradas chamam atenção: parece que há muita roupa para pouco corpo. Uma delas tem a face marcada pela fome, um rosto desnutrido e sem nenhum traço de bochecha. As crianças de cabeça pelada não têm pai ou mãe. São órfãs e perderam suas famílias em um evento que por meses foi reportado nos grandes jornais. Um banho de sangue denunciado inúmeras vezes por representantes internacionais. O mundo se calou diante de sua sina, e elas, já sem ninguém, foram trazidas para Jerusalém por um esforço humanitário.

O que mais me perturba nesta fotografia é que ela é de 1918 —mas poderia ser de hoje.

Crianças armênias resgatadas em Jerusalém, 1918
Crianças armênias resgatadas em Jerusalém, em 1918 - . Nubarian Library collection, Paris.

O registro em questão retrata órfãos armênios que perderam seus familiares em um genocídio que vitimou 1,5 milhão de pessoas no antigo Império Otomano (atual Turquia). Nesta quarta-feira (24), armênios do mundo todo se reúnem para rememorar seus mortos e denunciar as tentativas de apagamento de sua dor ancestral. Nesta data, penso no destino dos pequenos sobreviventes da foto, que provavelmente eram jovens demais para entender porque ficaram sozinhos no mundo.

Suas histórias de vida são assustadoramente similares às das crianças da Faixa de Gaza. Ainda que os processos históricos que levaram à perda de seus familiares e responsáveis sejam diferentes, é inegável que as consequências são semelhantes.

O processo de perseguição étnica dos turcos fez com que milhares de crianças armênias fossem encontradas assustadas, feridas, com fome e sem identificação. Assim como as cerca de 17 mil crianças palestinas que estão hoje desacompanhadas (segundo estimativa do Unicef), e que por vezes chegam para atendimento médico categorizadas através da sigla "WCNSF" ("wounded child, no surviving family"; ou "criança ferida, sem família sobrevivente").

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É preciso conhecer o passado, a sua cara mais feia e assustadora, para enxergá-lo com clareza quando ele se apresenta novamente. É preciso conhecer, portanto, o genocídio armênio, os mecanismos de desumanização empregados e suas consequências transgeracionais para exigir que essas dores sejam reconhecidas e não tenham mais lugar no século 21. E também para ter coragem de traçar comparativos quando ele se escancara em nossa frente. Minha bisavó Zaruhi foi uma das jovens armênias que ficou órfã. É dela que me lembro quando leio a história de Dareen al-Bayaa, uma menina palestina de 11 anos que perdeu mais de 70 familiares em um ataque aéreo israelense.

Me perturba ouvir Dareen dizer para um jornalista que quer "fortalecer seu coração" para não chorar mais. Me perturba que as histórias que ouvi sobre uma tragédia histórica que ocorreu com a minha comunidade se repitam com tanta facilidade no presente. Me perturba que, no século passado, as nações tenham cruzado os braços para o que acontecia com os armênios da região da Anatólia, e que hoje a mesma postura seja adotada quando as vítimas são palestinas.

No início do século passado, quando a violência contra vilas armênias se disseminou, não havia Organização das Nações Unidas, Declaração Universal dos Direitos Humanos, o conceito de "genocídio", "crimes contra a humanidade" nem mídias sociais.

No século 21, a humanidade já desenvolveu mecanismos suficientes para impedir a repetição de atrocidades, contra os armênios ou quaisquer outros povos, mas os órgãos internacionais que orgulhosamente criamos para dizer "Nunca mais!" simplesmente deixaram de cumprir sua principal função: a de proteger a vida humana e manter a paz. E isso deveria perturbar a todos nós.

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