Uma sociedade de liberais e modernos

Briga em restaurante em SP revela cultura individualista em que a sociedade mergulhou

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Serge Katembera

Um “fait divers” capturou a atenção dos brasileiros na última semana.

Nas redes sociais e nos programas de televisão, discutiu-se a respeito da briga num restaurante de São Paulo. Nesse brouhaha (alvoroço), uma frase chamou minha atenção, e quero utilizá-la para debater brevemente o que ela implica em termos sociológicos.

“Estou ligando para o MEU delegado!” Essa carteirada no meio da briga é reveladora da cultura individualista na qual a sociedade mergulhou. Ela indica um tipo específico de modernidade e consagra uma maneira de se relacionar com a autoridade pública própria da ideologia do empreendedorismo. Mas ela também sinaliza outra coisa.

O médico Carlos Iglesias causa confusão no restaurante Gero de São Paulo - Reprodução

E é exatamente aqui que chamo a atenção do leitor.

Nas culturas africanas, quando as crianças se referem a seus pais, elas não dizem “meu pai”, elas dizem “nosso pai”, “nossa mãe”. Isso se deve à composição dos núcleos familiares, onde há poucos casos de filhos únicos. E, mesmo em uma situação particular, ao mencionar os pais, as crianças sempre utilizam o plural porque a experiência de ser filho não é vivida de modo individual.

Crianças brincam em escola em Kinshasa, no Congo - Arsene Mpiana/AFP

Considera-se que sou filho com outros filhos, meus pais são meus pais ao mesmo tempo em que são os pais dos meus irmãos. A filiação não é uma relação pensada individualmente, ela se pensa sempre na dimensão coletiva.

Em lingala, uma língua do Congo, se diz: “Papa na BISO [nosso]”. O singular seria “Papa na NGAI [meu]”. Esta segunda forma quase nunca é usada. Porém, quando se olha para as sociedades ocidentais, as pessoas empregam a forma “meu pai disse”, “minha mãe fez”. A mesma forma aparece quando falamos “meu dentista”, “meu médico”. Marcamos distinção, classe e marcamos nossa individualidade. É nesse instante que o pensamento liberal se destaca na esfera da língua. Ele se impõe como marca da modernidade ocidental, onde modernizar significa atomizar.

Em swahili, outro idioma africano, esse tipo de autorreferenciação se desmarca do modelo ocidental, especialmente quando evocamos Deus. “Baba YETU [nosso]” é a forma usada para dizer “nosso pai”.

Porém, nas religiões cristãs, quando as pessoas fazem um louvor a Deus, em geral elas usam o pronome “eu”. Fala-se “Mungu WANGU [meu]”, para dizer “Meu Deus”; e “Nzambe na NGAI [eu]” em lingala. Nessas duas línguas, marcamos individualmente a relação com a divindade.

Nesse aspecto, a ascese cristã impõe uma relação íntima com Deus e se sobrepõe às concepções coletivas da espiritualidade africana.

Serge Katembera é doutorando em sociologia na UFPB e estuda as tecnologias da informação na democratização da África francófona

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