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Guilherme Lichand e Márcio Sommer Bittencourt

Ciência séria não escolhe evidência

Ministério da Saúde embasa tratamento precoce sob uso seletivo de evidências científicas

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Guilherme Lichand

Professor de economia do bem-estar e desenvolvimento infantil na Universidade de Zurique

Márcio Sommer Bittencourt

Mestre em saúde pública pela Universidade Harvard e doutor em medicina pela USP, é médico e pesquisador do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da USP

Ciência é a estruturação sistemática do conhecimento. Para isso, faz parte do processo científico classificar informações e fatos, formular hipóteses e eventualmente testá-las de maneira rigorosa a partir de dados. Há diversas estratégias para testar hipóteses: desde a observação até experimentos controlados no laboratório ou na vida real.

Para que a informação científica seja adequada, são necessárias regras básicas aceitas de maneira unânime para o bom exercício da ciência —cumprimento de todos os requerimentos éticos, instrumentos de mensuração validados por pesquisas anteriores, transparência dos dados e replicabilidade das análises.

Para além das regras básicas, a adequação da informação científica depende também de um diálogo interno próprio de cada área da ciência, que define quais são os métodos de investigação julgados pelos pares como sendo de maior ou menor qualidade, bem como as revistas científicas com processos de revisão mais ou menos rigorosos. Isso inclui desde a utilização adequada dos métodos analíticos disponíveis ate a consideração pormenorizada de fatores de confusão que possam influenciar nos resultados, passando pela consideração e contextualização dos dados diante de evidências de estudos anteriores.

No processo de separar a boa da má ciência e, por conseguinte, de separar as evidências que devemos levar a sério daquelas que não deveriam mudar as nossas crenças sobre o funcionamento do mundo, não surpreende que seja possível encontrar “base científica” para quase qualquer afirmação.

De um lado, revistas obscuras, com processos de revisão inexistentes, em que os autores simplesmente pagam para ter seus artigos publicados, referendam pesquisas que violam até mesmo as regras básicas “universais” —artigos que tiram conclusões que não são oferecidas pelos dados, que não permitem que outros cientistas verifiquem a validade dessas conclusões de maneira independente, ou que até mesmo deixam de considerar preceitos éticos básicos.

De outro lado, mesmo em revistas bem aceitas e muito citadas, divergências no diálogo interno da disciplina podem tornar certos artigos aceitáveis como investigações preliminares, com o intuito de gerar novas hipóteses que muitas vezes necessitam de estudos confirmatórios adicionais antes de serem reconhecidas como verdades, ou mesmo como evidências aceitáveis. Tais evidências iniciais limitadas "deixam de ter validade" quando novos estudos com técnicas ou dados de melhor qualidade apresentam evidências consistentes de que as conclusões iniciais eram "incorretas".

Diante dessa complexidade, acompanhar o diálogo científico é bastante desafiador, mesmo para cientistas não evolvidos diretamente com uma determinada área do conhecimento —que dirá para pessoas pouco acostumadas com o método científico. Diante disso, é função primordial dos órgãos científicos e de entidades oficiais uma avaliação aprofundada e independente das evidências disponíveis, inclusive para organizar a hierarquia de quais dados e estudos são considerados mais apropriados para responder uma pergunta de pesquisa, sobretudo quando os resultados de diferentes estudos são conflitantes.

Artigos que referendam o uso da (hidroxi)cloroquina publicado numa revista obscura, ou estudos preliminares em revistas respeitadas, deixam de ser evidência científica séria e adequada quando vários ensaios clínicos aleatorizados, com grande número de pacientes, publicados após avaliação dos pares em revistas científicas de alto fator de impacto, apontam na direção oposta.

Considerados "padrão ouro" na ciência médica, tais estudos comumente invalidam conclusões de estudos preliminares previamente publicados. Em outros casos, estudos publicados perdem sua validade quando outros cientistas não conseguem replicar seus resultados, seja porque o resultado inicial era um "falso positivo", porque a qualidade da evidência inicial era deficiente, ou porque o estudo viola princípios básicos de transparência.

Diante disso, preocupa que a base científica utilizada pelo Ministério da Saúde para embasar decisões em larga escala e para recomendar a milhões de brasileiros tratamentos precoces em vez de medidas de distanciamento e uso de máscaras até a chegada da vacina apoie-se em estudos posteriormente refutados por estudos mais robustos e até mesmo alvos de retratação.

Uma lista de 92 publicações de referência, compartilhada por membro do alto escalão do Ministério da Saúde em janeiro de 2021, ilustra claramente como se deu esse mau uso de evidências. A lista é reveladora. Ela inclui, por exemplo, uma meta-análise (tentativa de sumarizar e organizar toda a evidência científica produzida até então) publicado na respeitada revista The Lancet em 2021, que na sua única referência à cloroquina diz que essa terapia não tem efeito sistemático nenhum.

A lista também inclui o artigo originalmente publicado na The Lancet em maio de 2020 que sugeria que cloroquina tinha efeitos negativos, mas que, apenas um mês depois, foi objeto de retratação pela própria revista em função de graves deficiências na qualidade dos dados utilizados, incluindo falta de transparência na sua coleta. Curiosamente, o conjunto de evidências que integra essa lista seria muito mais adequado para concluir a clara futilidade —e até mesmo o potencial risco— do uso dessas medicações no contexto da Covid-19.

Mesmo com tudo isso, o ministério não mudou seus pré-conceitos com relação ao tratamento precoce. A ideia fixa nesta falsa verdade científica levou o governo federal a inclusive agredir a liberdade da decisão médica no cuidado individual de cada paciente ao disponibilizar, em janeiro de 2021, um aplicativo que recomendava de forma incorreta e até arriscada o uso de tais medicações. Vale destacar que o acesso era aberto à população geral, que pode não ter o conhecimento técnico suficiente para avaliar de forma crítica os riscos dessa estratégia.

A lista oficial de referências do Ministério da Saúde também é reveladora pelas suas omissões. Meta-análise publicada na reconhecida revista Nature em dezembro de 2020 sobre os impactos da hidroxicloroquina e cloroquina documenta não apenas a ausência de benefício destas medicações no tratamento da Covid-19 como também demonstra efeitos adversos importantes que podem estar associados com maior tempo de internação e maior mortalidade.

Ignorar os artigos mais relevantes que constam nas referências oficiais que o alto escalão do Ministério diz utilizar e excluir outros artigos altamente relevantes sugere ou inépcia por não saber interpretar a evidência científica disponível ou má-fé por escolher fazer um uso seletivo dessas evidências.

Nenhuma das opções deixa o ministério e seus servidores em condições favoráveis para o cumprimento de suas funções perante a população ou diante da lei. Afinal, no julgamento de várias ações em face da MP 966, o STF referendou a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que define que o agente público somente responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

O Judiciário dirá se a obsessão do Ministério pela cloroquina, na contramão das evidências científicas, foi dolo, erro grosseiro ou as duas coisas.

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Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do que foi publicado na primeira versão deste artigo, o artigo originalmente publicado na The Lancet em maio de 2020 sugeria que a cloroquina tinha efeitos negativos, e não positivos. O texto foi corrigido.

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