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Rodrigo Borba

O projeto de lei que proíbe a linguagem neutra deve ser aprovado no Congresso? NÃO

Usados por grupos restritos em contextos específicos, termos não são ameaça

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Rodrigo Borba

Professor do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ, realizou pós-doutorado na Universidade de Birmingham e na Universidade de Oxford, no Reino Unido

Tramitando no Congresso e em outros 14 estados, PLs contra linguagem neutra são tentativas esdrúxulas de reavivar o Escola Sem Partido, considerado inconstitucional no STF por impor censura à atividade docente e impedir a pluralidade de ensino. Em tom apocalíptico e conspiratório, o PL 5198/2020, discutido na Câmara, se baseia em pressupostos mentirosos que são facilmente desbancados por pesquisas científicas sérias. Vamos aos fatos.

Linguagem neutra se refere ao uso de pronomes e letras cujo objetivo é reconhecer a identidade de pessoas que não se entendem como masculinas ou femininas, um fenômeno geracional recente. No lugar de “ele” ou “ela”, algumas pessoas usam “ile”, “elu”, por exemplo. Palavras como “todos” tornam-se “todes”. Essas novidades podem assustar à primeira vista, mas nem de longe apresentam qualquer ameaça ao “todo da língua nacional”, como afirma a justificativa do PL.

Pesquisas sobre o fenômeno em diversos países mostram que não se trata de mudança linguística. Não há substituição de uma forma por outra. A norma culta não corre nenhum risco. Quando muito, a linguagem neutra é utilizada por grupos restritos em contextos específicos, particularmente nas redes sociais. Trata-se de adição de vocábulos que refletem pertencimento a certas comunidades e/ou seu reconhecimento.

Rodrigo Borba Professor do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ, realizou pós-doutorado na Universidade de Birmingham e na Universidade de Oxford, no Reino Unido
Rodrigo Borba, professor do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ - Acervo Pessoal

Em pesquisa com 1 bilhão de palavras na Argentina, verificou-se que formas neutras se restringem a pouquíssimos termos que, ainda assim, têm uso infrequente em comparação ao todo do conjunto e são predominantes entre falantes escolarizados que vivem em regiões urbanas. A mesma tendência parece ocorrer no Brasil. Ou seja, não há imposição. Só evidencia a vitalidade da língua e a criatividade de seus falantes.

Outra mentira do PL é considerar que essas poucas formas de uso limitado têm por objetivo provocar caos generalizado, destruindo a memória e a capacidade linguística e crítica das pessoas. Pesquisas do Laboratório de Psicologia Aplicada da Universidade de Friburgo, na Suíça, mostram o contrário. A leitura e a interpretação de textos com formas inclusivas ocorrem sem grandes empecilhos, pois nosso aparato cognitivo tem capacidade de adaptação.

Há, em contrapartida, diluição de estereótipos de gênero, especialmente entre crianças e adolescentes que participaram da investigação. Por sua simplicidade (afinal, são poucas palavras e letras), a linguagem neutra não precisa ser ensinada formalmente. Qualquer pessoa escolarizada com acesso à internet pode identificar e usar, se quiser. Proibi-la em sala de aula é arbitrário e catastrófico, pois impedirá que professores respondam dúvidas sobre o português que alunos veem na web.

Em minha pesquisa, tenho conversado com docentes de todo o país. A grande maioria nunca trouxe esse assunto para a sala de aula, e os poucos que o fizeram foram motivados por demandas das turmas.

Essas pesquisas mostram, portanto, que a proposta de proibir a linguagem neutra é uma tempestade em copo d’água. O PL é uma alucinação ideológica, uma perda de tempo e de dinheiro público. Em um país com mais de meio milhão de mortos pela Covid-19, que vê aumento da fome e ameaças de ruptura institucional, a linguagem neutra não deveria ser uma questão.

Há problemas mais prementes do que censurar professores, que enfrentam insegurança sanitária com a volta das aulas presenciais. Há coisas mais urgentes do que destilar preconceitos a pessoas trans e não-binárias, que só querem receber o respeito que merecem.

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