Descrição de chapéu
Wallace de Moraes

A ignorância histórica como terreno fértil para a discriminação racial

É deplorável começar 2022 como testemunha de um desrespeito aos movimentos negros

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Wallace de Moraes

Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ)

​O artigo de Antonio Risério ("Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo", 16/1), publicado nesta Folha, é de dar raiva, muita raiva, mas também aflição diante de cientistas sociais que demonstram nada saber de história, bem como diante de veículos de comunicação que aceitam publicar um acinte à comunidade negra nacional e internacional.

Aliás, o artigo demonstra um profundo desconhecimento conceitual da criação da ideia de raça, de racismo, de colonialismo, de escravidão, de colonialidade, de humilhação, estupro, genocídio, holocausto de negros e indígenas realizados por homens brancos a mando do Estado moderno europeu e dos seus filhos legítimos: os "necro-racistas-Estados" latino e anglo-americanos.

Membros da Coalização Negra por Direitos fazem protesto simbólico no gramado da esplanada dos Ministérios
Membros da Coalização Negra por Direitos fazem protesto simbólico no gramado da Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Matheus Alves e Pedro Borges - 12.ago.2020/Alma Preta

É inacreditável que ainda hoje, no século 21, um sociólogo não saiba relacionar a questão racial com as históricas opressões e discriminações justificadas pela ideia de raça. Ademais, raça é uma abstração colonial, mostra, como "argumentum ad nauseum", a literatura decolonial; mas o racismo, sua consequência direta, é deveras concreto. Todos os negros preteridos por brancos e seu capital nos melhores empregos, nas melhores escolas, deslocados para as favelas e periferias, parados em blitz policial e alvejados por "balas perdidas" sabem o significado de racismo.

Do ponto de vista histórico, todo racismo é institucional, pois praticado por instituições. Todavia, nada impede que um negro tenha ressalvas em relação a um branco, que um judeu não goste de um nazista, que um palestino não goste de um israelense. Se esse desgosto não implicar perseguição, exploração, genocídio, aprisionamento em massa, subjugação de uns sobre outros, praticado por instituições, não pode ser constituído como racismo. Portanto, se majoritariamente não existe exclusão de brancos por negros em nenhum lugar das Américas, não existe racismo de negro contra brancos. Porém, se instituições (Estado, polícia, Judiciário, empresas etc.) criadas por brancos, para garantir seu poder, subalternizam, excluem e prendem, majoritariamente, mais negros, existe racismo. É simples assim.

Os Estados modernos europeus mandaram sequestrar e escravizar africanos. Quem mata e prende mais negros no Brasil é o Estado; quem fixa penas maiores para negros, quando comparadas com os mesmos crimes cometidos pelos brancos, é o Judiciário. Nas empresas, seus altos escalões são formados em sua maioria por brancos. Em muitos empregos ainda é solicitado uma foto para verificar a "aparência" do candidato. A cor da pele é fundamental para o capitalista escolher o "melhor". Nada disso interessou ao sr. Risério na elaboração das suas ideias.

Sua principal tese é denunciar aquilo que chamou de neorracismo de negros. Para tanto, cita muitas passagens em que negros, principalmente nos EUA, demonstram raiva de brancos e até de asiáticos. As suas citações não incluem os contextos nas quais foram proferidas, nem a humilhação cotidiana que muitos sofrem. Trata-se de um erro metodológico grave que abre margem para a difusão daquilo que denomino de "fake history", amplamente realizada por nossas universidades ocidentalizadas; isto é, falseamento das histórias de lutas dos povos negros e indígenas por sobrevivência, dignidade e resistência. Depois de cinco séculos de extermínio, subjugação, exploração e estupro, eu diria que os povos negros e indígenas são pacíficos demais.

Definitivamente, a história brasileira precisa ser reescrita para que estudantes sejam melhor formados e evitemos que ideais racistas circulem em nossos jornais e nas nossas universidades.

A Folha deve repensar se vai continuar dando espaço para artigos que justifiquem a criminalização dos oprimidos, pois se assim o fizer deve assumir a responsabilidade de flertar desavergonhadamente com o racismo. Gostaria de convidar o jornal a refletir se daria espaço para um nazista dizer que é perseguido pelos judeus. Certamente não faria, por todos os motivos que já conhecemos. Então, não pode fazer o mesmo para um descendente dos colonizadores chamar movimentos negros de racistas.

Ao criticar a esquerda identitária, os movimentos negros, e defender os judeus, colocando-os como alvos de negros, o autor agrada a parte da base eleitoral do atual presidente. Assim, Risério entra na campanha eleitoral brasileira e ainda divulga seus livros para esse público. Papel lastimável prestado pela Folha.

Por fim, é deplorável começar 2022 sendo testemunha de um desrespeito aos movimentos sociais negros no país, que, não à toa, foi o último a acabar com a escravidão formal. O ano de 2022 promete, mas resistiremos como nossos antepassados!

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.