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Zara Figueiredo Tripodi

Promoção pessoal e audiência

Pretenso 'racismo negro' carece de evidências para um diálogo minimamente qualificado e responsável

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Zara Figueiredo Tripodi

Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Ouro Preto

Existem artigos que mesmo contrários à perspectiva ideológica do interlocutor suscitam o desejo do debate por trazer questões relevantes, contribuir para a qualificação de determinada pauta e até mesmo provocar revisão de pressupostos consensuados.

Outros, por sua vez, parecem responder mais à necessidade de promoção individual, buscando audiência que os legitime em certa área. Parece ser este último o caso de "Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo" (Ilustrada Ilustríssima, 16/1), publicado nesta Folha.

O título proselitista prepara o caminho para o argumento central do pretenso debate de que existiria um racismo negro, posto em marcha pela comunidade negra.

Ilustração de rosto masculino dividido no meio, costurado, com a boca aberta, como se gritasse. De um lado ele é negro, de cabelos pretos e olhos castanhos e do outro, loiro de olhos azuis.
Ilustração de Pogo Alves para Ilustríssima de 16.jan.2022 - Pogo Alves

É nesse sentido que se encaminha o "tom" discursivo do autor, que convida seu interlocutor a ficar atento ao movimento racial, pois "engana-se, mesmo com relação ao Brasil, quem não quer ver racismo, separatismo e mesmo projeto supremacista em movimentos negros".

Esse cenário, de acordo com o texto, estaria sendo tecido sob anuência das universidades e da elite midiática, que endossariam a "loucura supremacista" vinda como "discurso de esquerda".

Teria sido importante o autor trazer evidências, empíricas ou teóricas, para estabelecer um diálogo minimamente qualificado e responsável. Um bom começo seria provocar uma discussão contextualizada, evitando ilustrações acríticas.

Ideologicamente, a afirmação carece de muita saliva para explicar a vinculação feita entre movimentos identitários raciais e esquerda no Brasil.

"É uma tolice", escreve o autor, bem como um "dogma", acreditar que pretos são oprimidos, que "não dispõem de poder econômico ou político para institucionalizar sua hostilidade antibranca". Afinal, "ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo."

Embora o negacionismo tenha assumido contornos inéditos, causa-me perplexidade que se neguem evidências da condição socioeconômica do negro no Brasil.

No mercado de trabalho, em 2018, 64,2% da força de trabalho desocupada e 66,1% da força de trabalho subutilizada era composta por pessoas negras, segundo o Ipea (2020).

O mesmo estudo mostra que 74,4% das pessoas em condição de extrema pobreza e 75,7% das pessoas em condição de pobreza no Brasil eram negras.

Quando se trata de mobilidade social, pesquisas mostram que os negros possuem rendimentos inferiores aos dos trabalhadores brancos, mesmo quando detêm o mesmo grau de escolaridade, segundo Vaz (2020). Quando os negros avançam na educação, suas credenciais escolares possuem menos possibilidade de se transformar em maiores salários.

Na educação básica, embora alunos brancos e negros frequentem uma mesma série, a diferença de aprendizagem entre eles pode chegar até sete anos, segundo Tripodi e Delgado (2021).

Negros, segundo reportagem da Folha de 2021, são minoria no serviço público federal e ocupam apenas 15% de cargos mais altos.

Do ponto de vista teórico, um esforço do autor para definir o que está chamando de "poder" teria ajudado a compreender a afirmação de inexistência entre poder e racismo, bem como descrever quais seriam os instrumentos de poder que, nós, negros, temos utilizados para institucionalizar o racismo.

Afinal, o que os dados indicam é que, em termos de composição de assentos no Legislativo brasileiro, o grupo que menos avançou também foi o negro.

Outra evidência de assimetria de poder entre brancos e negros neste país é ver que existe espaço para textos dessa ordem, que definem como "ignorância e fraude histórica" a condição passada e em larga medida ainda atual do negro no Brasil.

O que o autor denomina de fundamentalismo, decorrente de "estigmação passada", prefiro chamar de luta e tentativa de formulação de um contrato social, em que os negros sejam partícipes.

O tom proselitista que abre também fecha o artigo, afirmando que "as implicações" do suposto fundamentalismo parecem óbvias.

Erra o autor. Não há nada de óbvio no texto, a não ser um incômodo que parece cercá-lo, expresso pela repetição do tema em seus trabalhos.

Incômodo, talvez, de ver que nós, negros, não aceitamos mais ler textos desta ordem e não responder. Principalmente, não precisar de alguém que o faça por nós!

TENDÊNCIAS / DEBATES
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