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Patrícia Valim

Como chove no país das remembranças

Deslizamento de morro em Ouro Preto é mais um crime que poderia ter sido evitado

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Patrícia Valim

Historiadora do direito e professora da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto)

Em 1951, Carlos Drummond de Andrade publicou o poema "Morte das casas em Ouro Preto", no livro "Claro Enigma": "Vai-se a rótula crivando / como a renda consumida / de um vestido funerário / E ruindo se vai a porta / Só a chuva monorrítmica / sobre a noite, sobre a história / goteja. Morrem as casas / Morrem, severas. É tempo / de fatigar-se a matéria / por muito servir ao homem / e de o barro dissolver-se / Nem parecia, na serra / que as coisas sempre cambiam / de si, em si. Hoje, vão-se".

Na última quinta-feira (13), pouco depois das 10h, parte do Morro da Forca —em uma das principais ruas de Ouro Preto (MG), com grande movimento de pessoas e carros— caiu minutos depois que a Defesa Civil rapidamente interditou o local e preservou centenas de vidas que passam por ali diariamente. Esse desabamento soterrou o histórico casarão "Baeta Neves", interditado desde 2012, abrindo uma fenda no morro que ainda poderá desabar e atingir pessoas, outros casarões históricos com estabelecimentos comerciais, o Centro de Convenções da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto), uma escola de educação infantil e muita história.

Chove torrencialmente na chamada região dos Inconfidentes —Ouro Preto, Mariana e Itabirito— desde 27 de dezembro de 2020, com aumento considerável nos dias 8 e 9 de janeiro, quando eu, meu filho de 11 anos e vizinhos saímos às pressas conforme orientação da Defesa Civil depois de dois deslizamentos seguidos no morro atrás de nossas casas. O medo e a insegurança deram lugar ao sentimento de indignação quando, na segunda-feira (10), descobrimos que os deslizamentos que nos colocaram em risco foram causados por uma construção no topo do outeiro, cujo proprietário decidiu jogar terra e restos da obra morro abaixo.

A ação desse proprietário, ao mobilizar uma ideia própria de liberdade individual em uma realidade sistêmica, colocando em risco um grupo de pessoas e ele mesmo, demonstra que não teremos um país democrático de fato enquanto a população não for educada para o fim dessa falácia neoliberal: a liberdade individual não pode se sobrepor à vida das pessoas em sociedade. Em um jogo de escala, essa mesma lógica é ampliadíssima há décadas pelas mineradoras da região por meio de uma exploração predatória para a obtenção de lucros elevados. Tudo com a conivência do poder público, que atua para viabilizar esses negócios no lugar de proteger a vida das pessoas, garantindo terra segura, trabalho digno e comida farta.

Nesta época chove torrencialmente há séculos, mas desde 2012 laudos técnicos de geólogos e engenheiros ambientais comprovam que o deslizamento do Morro da Forca é mais um crime ambiental que também poderia ter sido evitado. Por isso, não podemos qualificar esses desabamentos e as enchentes na Bahia e em Minas Gerais como eventos inevitáveis, "tragédias" —eufemismo para o extrativismo criminoso e descontrolado das mineradoras como a única possibilidade de desenvolvimento da região e do país que escravizou milhões de africanos e africanas e hoje pauperiza sua gente para "fornecer produtos tropicais para o mercado europeu": cana-de-açúcar, ouro, metais preciosos, café, borracha, soja, carne de frango, minérios.

Não podemos mais aceitar como projeto de país a atualização do "sentido da colonização" (denunciado por Caio Prado Júnior na década de 1940), um desenvolvimentismo que mata a diversidade e a nossa gente, aparta as pessoas de suas terras, engole cidades, transforma a natureza em lama e a nossa história em pó. Para isso, como no poema de Drummond, precisamos construir um "país de remembranças": palavra que vem do ato de remembrar, de lembrar e de unir terras.

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