Descrição de chapéu
Tati Nascimento

Vamos parar de nos enganar

A reação vem em forma de raiva: precisam gritar, ser ouvidos a qualquer custo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tati Nascimento

Publicitária e empreendedora do audiovisual, é sócia-fundadora da produtora Janga

Não vamos nos enganar e olhar pelo lado enviesado da história mais uma vez. O Brasil, este que está sendo visto nos últimos três anos com profundidade abissal e por uma quantidade avassaladora de pessoas devido ao massivo acesso à internet, este Brasil mesmo que vem a sua mente, de forma confusa e intensa, alegre e triste, poderoso e omisso, não está terminando, não. Está, finalmente, prestes a (re) começar.

Novas narrativas pretas e não brancas emergem, furando inúmeras e protegidas bolhas, impulsionadas pelo recente acesso a novos espaços possibilitado pelas políticas afirmativas em geral e pela democratização do alcance à internet via smartphones —de onde atentas vozes seculares, mantidas a duras penas de uma geração à outra, agora saltam daqueles lugares nos quais haviam sido trancafiadas a sete chaves por uma minoria e ressoam aos quatro ventos. Trazem novas possibilidades do existir, do estar e do agir, carregando consigo um importante sentido, costurando pontas soltas e conectando, mesmo que de forma intuitiva, tudo aquilo que foi desfeito propositalmente ao longo destes mesmos séculos.

Manifestantes pintam frase #vidaspretasimportam, na avenida Paulista, em São Paulo, em protesto pelo assassinato de Beto Freitas, em Porto Alegre - Bruno Santos - 21.nov.2020/Folhapress

É como se aquela avó, bisavó, tataravó "índia" (sic) —não por acaso é quase sempre a história de uma mulher—, que justifica com certa paz de espírito e nos limites impostos pela tradicional família brasileira a tez mais escura de algum primo distante de Minas Gerais, lhe chamasse, e toda a sua família, para uma conversa sincera numa noite de Natal de casa cheia. Na sala, em frente a todos, em voz alta e com muita sabedoria e tranquilidade, abrisse a caixa de pandora falando sobre a "morenice" (sic) mal contada e mal nomeada.

Estranhamente aquela avó, bisavó, tataravó tem os cabelos crespos e, ao ouvi-la, falar algumas sensações que ficavam no ar se assentam, algumas perguntas sem respostas satisfatórias são respondidas, algum comportamento jamais explicado vai tomando forma. Há paz de espírito neste momento.

Para a maior parte dessa família, a conversa é tranquilizadora, enquanto para poucos, desesperadora. Uns ouvem com atenção, enquanto outros tapam os ouvidos cantarolando alguma canção de ninar reconfortante ou distribuem sorrisos amarelos vazios. O desespero é consequência para aqueles que não sabem o que fazer com a nova e real história que os obrigará a reencaixar o mar de falsas verdades contadas até aquele momento e que por conveniência, em grande parte das vezes, reproduzem vidas afora.

Esses surdos de ocasião, que queriam o país silenciado e resignado, inquietos na posição de ouvintes, tentam esconder novamente aquela mulher ancestral, tentam de todas as formas invalidar suas palavras porque a existência dela esvazia completamente o discurso com o qual chegaram até ali, jogando-os no mesmo lugar ocupado por aqueles que aprenderam a desdenhar. Atordoados, querem agarrar-se, com unhas bem feitas e dentes alvíssimos, desesperadamente, a esse velho Brasil. Porém ele definha, apesar de suas vontades e de seus princípios talhados especialmente para que nada mude, mesmo debaixo de um verniz brilhante de ares supostamente democráticos.

Felizmente, com o já verniz gasto, os princípios vêm sendo revelados com seu verdadeiro conteúdo, e o que é velho escorre por entre as frestas no chão, alheio às vontades de quem conhecia apenas um lugar de protagonismo.

Enquanto a agonia toma conta dessa pequena mas barulhenta parte dos ouvintes, a maior parte ouve com atenção as histórias que saem da boca dessa ancestral. De cada história se desprende uma força até então desconhecida, e a sensação é a de preenchimento, de fazer parte finalmente. As possibilidades se ampliam.

Do outro lado, os embriagados pelo poder lamentam bêbados. As lágrimas equilibram-se na mucosa ocular prestes a transbordar, mas não se permitem chorar. A reação vem em forma de raiva, e o uso de argumentos manipulados por um pseudoconhecimento ainda parece garantir um lugar de destaque. Precisam gritar, precisam ser ouvidos a qualquer custo.

Vamos apurar nossos ouvidos tentando ignorar os gritos e prestar atenção em cada história contada por aquela ancestral; elas recuperarão o sentido do que julgávamos perdido. Ele sempre esteve lá, e sei que você, leitor, sabe exatamente onde procurá-lo.

O Brasil não está terminando, está prestes a (re)começar mais inteiro do que nunca.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.