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Alberto Pfeifer e Alessandro Visacro

Rearranjos do poder mundial

Multifacetada, estratégia russa inclui desinformação, coerção e dissuasão

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Alberto Pfeifer

Coordenador do DSI (Iniciativa Estratégias em Defesa, Segurança e Inteligência/Ciência, Tecnologia e Inovação e Relações Internacionais) da Escola de Segurança Multidimensional (Esem) da USP

Alessandro Visacro

Membro do DSI, é autor de “Guerra Irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história”, “A Guerra na Era da Informação” e “Lawrence da Arábia” (ed. Contexto)

Discutir o conflito na Ucrânia requer o uso do pensamento estratégico, superando a mera perspectiva tática, que indiferencia batalhas de guerras. Clausewitz ensinou que guerra é política armada. Política se faz por meio da estruturação sistemática de fatores de poder. No mundo dos Estados-nação, a consecução dos objetivos nacionais demanda a orquestração de todas as capacidades disponíveis numa sociedade, coercitivas ou não.

As operações na Ucrânia correspondem a um modelo de conflito diferente da "guerra convencional". O principal objetivo político externo de Moscou é restaurar a projeção de poder que a Rússia eurasiana exibe desde o século 14. Vladimir Putin reivindica essa primazia, usurpada, por razões internas e externas, desde o fim da Guerra Fria. O objetivo estratégico é o de recolocar a Ucrânia sob sua esfera de influência, impedir o alinhamento de Kiev com a Europa ocidental e adquirir profundidade estratégica face à ameaça expansionista da Otan, a aliança militar ocidental.

Os objetivos operacionais das forças russas resumem-se à falaciosa "desnazificação", ou troca de regime, substituindo-o por um governo fantoche; e "desmilitarização", ou a neutralização do potencial de resposta ucraniana. O objetivo político interno é manter a coesão da Federação da Rússia, entidade multinacional e multiétnica, e do regime de Putin, apoiado em estamentos burocráticos e elites oligárquicas, aliada à demonstração de força à vizinhança —o exterior próximo da ​ex-União Soviética. O objetivo econômico central é a manutenção e expansão das fontes de hidrocarbonetos, sua exploração e exportação, por meio de uma rede de reservas e logísticas que tem nexo central em áreas da Ucrânia.

O instrumento militar subordina-se a um arranjo político e estratégico multifacetado que inclui, entre outros, diplomacia; atividades cibernéticas; campanhas de propaganda e desinformação; coerção econômica; inovação tecnológica militar; dissuasão nuclear; emprego de mercenários; uso de forças não convencionais; guerras por procuração; e guerra jurídica. A reinserção política e militar da Rússia no Oriente Médio e no Mediterrâneo oriental, a partir dos conflitos da Síria e da Líbia, por exemplo, denotam sua grande flexibilidade estratégica.

A guerra na Ucrânia começou na Revolução Laranja de 2004. Acirrou-se, entre 2013 e 2014, com a Euromaidan (protestos a favor de maior integração com a Europa), a anexação da península da Crimeia e a sublevação na bacia do rio Donets. O acordo de assistência de segurança entre Washington e Kiev, de 2021, elevou a urgência de ação. A janela de oportunidade ofereceu-se pela retomada econômica pós-pandemia e a dependência europeia de energia russa, somada à fragilidade de reação da Otan. A combinação prévia com a China de Xi Jinping permitiu o desencadeamento da campanha.

Com o apoio de operações de influenciação e ataques cibernéticos, Moscou almeja, por meio de uma ação massiva e rápida, conquistar um objetivo limitado, sem desencadear uma escalada. Contudo, os objetivos políticos e estratégicos de Putin poderiam ser alcançados com mais paciência. Se as defesas ucranianas e o regime de Volodimir Zelenski resistirem, os dividendos da "operação militar especial" podem se tornar controversos.

Mesmo seu êxito suscitará uma série de desafios: acirrar a competição com o Ocidente e o rechaço da opinião pública ocidental; revitalizar o propósito da Otan; induzir os europeus a diversificarem suas matrizes energéticas; enfrentar uma guerra de resistência nos territórios ocupados; ensejar obstáculos a transações financeiras e comerciais com o restante do mundo; desequilibrar a economia doméstica e isolar a Rússia do mundo.

O isolamento russo definiria contornos de uma nova ordem mundial, centrífuga e de competição multidimensional. A resolução da crise com a garantia de atendimento dos interesses vitais de ambos os lados —a independência da Ucrânia e a segurança da Rússia— possibilitará a retomada da perspectiva integrativa da ordem internacional, ainda que matizada pelos elementos de guerra não convencional.

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