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Maria Alice Setubal (Neca)

O que os refugiados da Ucrânia podem nos ensinar?

Vivemos sob o mito do país que recebe imigrantes sempre de braços abertos

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Maria Alice Setubal (Neca)

Doutora em psicologia da educação (PUC-SP), socióloga e presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal

Há semanas assistimos desolados às histórias dramáticas vividas pelos ucranianos que deixam seu país em consequência da guerra, especialmente mulheres e crianças, que muitas vezes estão sujeitas a agressões físicas e sexuais. Diversos são também os relatos de xenofobia e racismo sofridos principalmente por africanos e muçulmanos que buscam sair do território e, muitas vezes, são discriminados e deixados para trás no acesso aos trens nas fronteiras.

Deslocamentos geográficos forçados se traduzem também em fortes deslocamentos emocionais, em desenraizamentos gerados por uma violência traumática e pela ausência de pertencimento na chegada a um outro lugar, onde o idioma, a cultura, a comida e os modos de ser, fazer e sentir são diferentes.
No caso dos ucranianos, há, ainda, a separação das famílias, uma vez que os homens (pais e maridos) e os familiares idosos tiveram que permanecer. Lidar com esse turbilhão de sentimentos e hostilidades, que se mistura com a culpa de fugir e a completa incerteza do futuro, de reencontrar as famílias ou voltar ao seu país, é um drama muito difícil de imaginar para nós, brasileiros.

Trazidos por uma missão evangélica, refugiados ucranianos desembarcam no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos (SP) - Bruno Santos - 18.mar.22/Folhapress

Se por um lado as cenas de violência e racismo na Ucrânia chocam, vale uma pergunta a nós mesmos: de que forma olhamos para a realidade dos refugiados no Brasil? Somos um país formado por diferentes fluxos migratórios ao longo da nossa história e vivemos sob o mito de um país que recebe de braços abertos. Ser é diferente de parecer. Basta olhar para como recebemos os inúmeros venezuelanos que, por conta da instabilidade econômica, cruzam a fronteira na direção de Rondônia; os haitianos que chegaram em massa e se distribuíram em diferentes regiões do país após desastres naturais; os africanos do Congo e de Camarões; ou, ainda, os sírios refugiados da recente guerra. Sem esquecer a história recente do jovem Moïse Kabagambe, que estava no Brasil desde 2014 como refugiado político e foi assassinado no Rio de Janeiro por cobrar o seu salário.

O país reconheceu 21 mil refugiados em 2019 e um total de 807 mil imigrantes, números muito pequenos em relação à nossa população e ao fluxo de refugiados e imigrantes nos países da Europa e nos Estados Unidos. No entanto, são poucas as políticas públicas e as instituições que os atendem e desenvolvem iniciativas para apoiá-los —e são vários os relatos de discriminação e abandono sofridos por eles.

O abalo experimentado pela perda do lugar de origem em qualquer situação de deslocamento configura-se uma situação dramática em inúmeras dimensões, o que exige diversas ações possíveis, como aponta a publicação "O que o Investimento Social Privado Pode Fazer por Migrações e Refugiados", do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), sobre o papel do investimento social privado. Entre elas destacam-se acolhimento, hospitalidade e inclusão social para o acesso a garantias de condições básicas de dignidade e direitos; ensino da língua, acesso ao sistema bancário, moradia e saúde; ações de educação básica, qualificação ao trabalho e ensino superior; cursos profissionalizantes, empreendedorismo, encaminhamento a empregos; enfrentamento do trabalho escravo; construção de uma narrativa de fortalecimento humanitário.

Ao lado das dimensões elencadas acima, a saúde mental deve ter prioridade. Acolher e acompanhar essas pessoas e famílias, desenvolvendo uma escuta real que possa ressaltar as memórias boas para que as cenas de violência não fiquem como a única referência, para, assim, ser possível restituir-lhes sua potência, seu lugar como sujeitos. Oferecer um espaço para que possam elaborar e entender o que podem preservar de suas culturas originais e, ao mesmo tempo, o que podem assimilar e aprender da nova cultura do país em que estão vivendo são caminhos para atuação não só no momento da chegada, mas para o acolhimento a longo prazo.

Somos um mundo globalizado, e as guerras, os desastres naturais, as crises nos afetam do ponto de vista econômico, político e ambiental, mas sobretudo social, como seres humanos que todos somos. Há muitas lições a aprender; contudo, nesses cenários, é na nossa dignidade humana que temos que buscar agir para nos sentirmos conectados.

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