Novos refugiados sírios trazem facetas inéditas da culinária árabe

Por encomenda, é possível conhecer pratos familiares e receitas que vão além de quibe e esfirra

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Flávia Pinho
São Paulo

De tão comuns em São Paulo, quibe e esfirra já parecem paulistanos. Mas você já ouviu falar no eajah? Teve chance de provar o mansaf? Ou o mutabal?

Tais pratos de origem árabe ainda são pouco conhecidos porque desembarcaram por aqui pelas mãos da mais recente leva de imigrantes sírios.

Desde que estourou a guerra na Síria há dez anos (11/3/2011), famílias inteiras fugiram do país e escolheram São Paulo para viver.

Segundo o Comitê Nacional para os Refugiados, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, a capital paulista é o município brasileiro que recebeu o maior número de trabalhadores solicitantes de reconhecimento da condição de refugiados entre 2011 a 2019 – e a nacionalidade síria é a segunda mais presente, atrás apenas dos venezuelanos.

Oriundos da classe média síria, profissionais dos mais diversos ramos chegaram à cidade em busca de oportunidade —e boa parte deles descobriu, por acaso, que poderia transformar o caderno de receitas de família em fonte de renda.

Em São Paulo desde 2014, Fatima Ismail, 45, nasceu em Alepo, maior cidade da Síria. Chegou grávida, sem falar uma palavra de português, na companhia do marido e quatro filhos.

Com a ajuda de amigos de amigos, conseguiu se virar por alguns meses, até o dia em que um vizinho bateu à sua porta.

“Eu estava fazendo o almoço e ele veio perguntar que cheiro maravilhoso era aquele. Imagine, era nossa comida do dia a dia!”, acha graça.

Família de Fatima Ismail, que nasceu em Alepo e migrou com a família em 2014 para o Brasil, onde hoje prepara receitas como o eajah - Bruno Santos/Folhapress

Ismail passou a vender seus quitutes em bazares e a cozinhar por encomenda. Em cursos de empreendedorismo, aprendeu a gerir o negócio —na pré-pandemia, chegou a fornecer comida para festas de até 100 pessoas.

Ela aproveita para oferecer, entre os pedidos mais comuns, especialidades como o eajah. “É como um tempurá sírio vegetariano. Frito na chapa e vendo como lanche, saiu muito nas férias escolares”, conta a cozinheira, que cobra R$ 3 pela unidade.

Eajah preparado por Fatima Ismail, espécie de tempurá sírio vegetariano - Bruno Santos/Folhapress

Parecida é a história de Salsabil Matouk, 35 —ela também estava grávida quando chegou a São Paulo, em 2014, com o marido e um filho de 3 anos.

Sem falar português, a farmacêutica de formação viu na cozinha a chance de sobreviver. A família cresceu —já são quatro crianças, a menor nascida há 1 mês— e o negócio também.

A farmacêutica Salsabil Matouk , que migrou com a família para o Brasil em 2014 devido à guerra da Síria - Bruno Santos/Folhapress

“A comida síria de São Paulo virou um pouco brasileira, mas as famílias de origem árabe gostam de pedir as receitas originais de lá, como nossos avós faziam”, ela diz.

Ela mostra que seu babaganuche difere da pasta de berinjela que se tornou comum nos cardápios dos restaurantes. “O original da minha terra leva tomate, cebola, nozes e romã”, compara.

Babaganuche de Salsabil Matouk, que leva tomate, cebola, nozes e sementes de romã, como na Síria - Bruno Santos/Folhapress

Segundo Henrique Trindade, 29, historiador do Museu da Imigração, há uma razão para a visão limitada que o paulistano tem da culinária síria.

Ele explica que os imigrantes que vieram para a cidade nos anos 1940, fugindo da Segunda Guerra Mundial, eram predominantemente muçulmanos e tinham certo poder aquisitivo.

Muitos se estabeleceram em suas profissões de origem —não havia restrições para diplomas estrangeiros— e outros abriram casas de comércio.

“Temos registros orais de que a gastronomia árabe proliferou em São Paulo pelas mãos dos comerciantes da Rua Quintino Bocaiúva, na Sé, que vendiam quibes e esfirras.”

E foram eles, no pós-guerra, os principais chamarizes dos primeiros restaurantes inaugurados pela colônia —entre eles, a Brasserie e Rotisserie Victoria (1947), o Almanara (1950), o Bambi (1951) e o Jaber (1952).

Nem todos os fundadores tinham a Síria como país de origem. Imigrantes oriundos do Líbano trouxeram na bagagem a mesma culinária —ambos têm em comum o trigo como principal ingrediente, segundo Rodrigo Libbos, sócio do grupo Salonu e professor da faculdade de gastronomia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“Mas considero que a cozinha sírio-libanesa de São Paulo já é paulistana. Além de levar pouco tempero comparada com a original, adotou a carne bovina no lugar do cordeiro e do carneiro”, diz Libbos.

Aos 75, Mouna Aris Gaspar é uma refugiada veterana em São Paulo. No Brasil desde 1948, nunca teve autorização do marido para cozinhar profissionalmente.

Foi só em fevereiro do ano passado, um mês após ficar viúva, que ela se lançou oficialmente no mercado de delivery —e, mesmo com a ajuda da filha Gisele, 47, não dá conta dos pedidos.

Ela só lamenta a pouca saída de receitas tradicionais, como a sopa de coalhada com pepino e a berinjela assada no bafo, com tomate, cebola, azeite e pimenta síria, que sua família come com pão, no café da manhã.

“A comida árabe é imensa e com temperos muito mais fortes. A gente suaviza tudo para o brasileiro, mas o que vende mesmo são os pratos mais conhecidos.”

Ensinar refugiados de qualquer nacionalidade a ganhar dinheiro com sua cultura gastronômica é uma das missões da ONG Migraflix, fundada em São Paulo em 2015.

As mulheres, segundo a vice-diretora Camila Batista Pinto, 32, são prioridade. “Elas trazem tradições fortes. Através de programas de empreendedorismo em parceria com a iniciativa privada, mostramos que é possível transformar o cotidiano delas em renda para as famílias”, afirma.

O programa Raízes na Cozinha, de 2017, cadastrou cozinheiras refugiadas à plataforma de entregas UberEats. Dois anos depois, foi a vez de o projeto Raízes na Cidade capacitá-las para receber visitantes em casa, através do programa Airbnb Experiences.

Um serviço de catering, intermediado pela ONG, permite que as refugiadas forneçam coffee breaks, almoços e jantares a empresas como Cargill e Google.

Mas a pandemia, lamenta a vice-diretora, pôs todas as iniciativas em compasso de espera. Workshops e aulas online estão sendo oferecidas aos clientes, mas o desafio é grande no novo formato.

A maioria dos refugiados fala português com forte sotaque, o que dificulta a compreensão à distância, e poucos têm equipamentos adequados.

“Também estamos fornecendo apoio para que aprimorem as redes sociais, façam fotos profissionais e descrevam melhor seus produtos para delivery. A profissionalização é a chave para que os refugiados conquistem mais clientes”, ela diz.

Receitas

EAJAH
de Fatima Ismail

2 batatas descascadas e raladas
5 ovos
3 colheres (sopa) de farinha de trigo
1 maço de salsinha picada
2 cebolas picadas
1 cabeça de alho picada
1 colher (sopa) de coentro seco
1 colher (sopa) de hortelã fresca
sal a gosto

Modo de fazer
Em uma tigela, misture tudo, modele os bolinhos e frite em óleo bem quente


BABAGANUCHE
Salsabil Matouk

2 berinjelas médias
3 colheres (sopa) de tahine
2 colheres de iogurte natural
sal e suco de limão a gosto
4 colheres de azeite
1 dente de alho picado
1 tomate picado
salsinha, nozes, hortelã e cebola bem picadas
sementes de romã a gosto

Modo de fazer
Fure as berinjelas e leve-as à chama do fogão para tostar. Deixe amornar, remova a casca e as sementes e pique com a faca até virar uma pasta. Adicione a tahine, o iogurte, o sal e o suco de limão. Incorpore os outros temperos e finalize com sementes de romã e nozes. Sirva com pão árabe.

Conheça alguns dos refugiados sírios que fazem comida por encomenda em São Paulo

Fatima Ismail
Moradora da Vila Gumercindo, Zona Sul de São Paulo, prepara salgados e pastas árabes, pratos frios e quentes. Para ser cortado em fatias, o quibe enrolado com nozes e carne custa R$ 60. Lanches de falafel, cafta e shawarma saem a R$ 25 cada um.
www.facebook.com/fatima.ismail.9803150
@comida_siria_fatima_ismail
tel. 11/94444-7334​

Cozinha de Salsabil
Da casa de Salsabil Matouk, em São Caetano, saem pratos como o fattaha, que intercala camadas de pão torrado, arroz e frango com castanhas (R$ 50). Ela gosta de reproduzir receitas de família – seu babaganuche (R$ 50), além da berinjela com tahine (pasta de gergelim), leva tomate, cebola, salsinha, hortelã e romã.
www.facebook.com/cozinhadesalsabil
@cozinhadesalsabil
tel. 11/94147-2736

Muna Culinária Árabe
Mouna Aris Gaspar se refugiou em São Paulo após a Segunda Guerra, mas só se lançou como cozinheira profissional na pandemia. Com a filha, Gisele, prepara pratos e kits de salgados típicos (bandeja com 12 esfirras por R$ 50). Fora do cardápio, a sopa de coalhada e pepino, com quatro miniquibes, sai a R$ 80.
www.facebook.com/munaculinariaarabe
@munaculinariaarabe
tel. 11/94499-8844

Limar Comida Árabe
Omar Suleibi e a mulher, Kenanh, são de Damasco, capital síria, e cozinham por encomenda na casa onde vivem, na Vila Carrão, Zona Leste da capital. A porção de arroz com ervilha, carne moída, milho e temperos sírios custa R$ 20.
www.facebook.com/LimarComidaArabeCaseira
@limarcomidaarabe
tel. 11/94897-4258

Razan Comida Árabe
Há sete anos em São Paulo, Razan Suliman vive no Ipiranga (R. Doutor Mário Vicente, 379) e transforma a garagem em loja toda sexta (18h às 22h), sábado (11h às 20h) e domingo (11h às 18h). Salgados, marmitas e refeições completas também podem ser encomendados. O lanche de falafel custa R$ 22.
www.razancomidaarabe.com
@razancomidaarabe
tel. 11/99880-8496

Talal Culinária Síria
Depois que fecharam seu restaurante em 2018, Talal Al-tinawi e a mulher, Ghazal Baranbo, passaram a cozinhar por encomenda. Pequenos grupos, de cinco a 13 pessoas, podem comer na casa da família – eles recebem na própria sala, só com reservas, para o jantar de sábado ou o almoço de domingo (R$ 99,99 por pessoa). Faz parte do menu o mansaf, perfumado arroz com carne e castanhas.
www.facebook.com/talalculinariasiria
@talal_culinaria_siria
tels. 11/96622-1305 e 99996-2290

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