O retorno à vida em comum depois de dois anos de quarentena tem lá suas vantagens. Mas, para quem é curioso por definição, para não falar enxerido, a mais saborosa delas talvez seja a possibilidade de entreouvir conversas alheias na rua.
Não é bem fofoca, vale notar, para aqueles preocupados com o quanto isso edifica —mesmo que a fofoca, como lembra Henry Jenkins em seu "Cultura da Convergência", nada mais seja que "um modo de falar de si mesmo por meio de críticas às ações e aos valores alheios". A informação será passada adiante na maioria das vezes como anedota, sem nomes, sobrenomes e julgamentos morais. Ou só um pouco do último.
Também não se trata de informações exatamente úteis. São frases soltas, em geral inofensivas. Mas que por vezes parecem petrificar um instante no tempo, traduzindo com uma exatidão inesperada o ethos de um país, ou o seu contexto político, econômico, cultural.
Brasil, 2022. Alguém conta que a mulher passou a beber cerveja porque a caipirinha está impossível com essa economia. Agora, bebe mais que ele. Outro narra a história de uma amiga que juntou dinheiro por meses para fazer compras no free shop. Voltou com um estoque de Vanish, único produto à venda lá. Um homem tenta explicar pacientemente à amada que ela não pode agendar uma consulta para 30 de fevereiro porque a data não existe.
São pedaços de vidas privadas que há pouco tempo só podiam ser descobertos em podcasts ou se compartilhados nas redes sociais. (Por anos, aliás, a revista O Globo manteve a seção "Entreouvido por Aí", com pérolas do tipo enviadas pelos leitores.)
Para quem lida com o mercado de notícias, ou simplesmente é frequentador assíduo das plataformas sociais, esses fragmentos também servem de fonte de esperança diante das centenas de comentários raivosos publicados por minuto. E um lembrete de que nos resta sim alguma capacidade de escuta do outro. Mesmo que seja só para contar um bom causo depois.
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