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Marcelo Calero

Congresso acertou ao aprovar PEC que libera bilhões para benefícios sociais às vésperas da eleição? Não

Decisão será lembrada como uma das maiores ofensas à Constituição

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Marcelo Calero

Diplomata e deputado federal (PSD-RJ), foi ministro da Cultura (governo Temer)

Estimulados pelos constantes e deploráveis ataques de Jair Bolsonaro ao nosso sistema eleitoral, temores sobre a possibilidade de um golpe de Estado se avolumam. Cabe sossegar os corações mais aflitos: o golpe já aconteceu.

Desde o último 13/7, ao concluir a aprovação da PEC Kamikaze que permite ao governo gastar cerca de R$ 40 bilhões às vésperas do pleito em outubro, a Câmara dos Deputados sacramentou aquela que certamente será lembrada como uma das maiores ofensas à Carta já engendradas por uma legislatura. E não só à Constituição, e também à lei eleitoral, mas sobretudo aos cofres públicos.

Câmara abre sessão para votação da PEC que amplia benefícios em ano eleitoral - Gabriela Biló /Folhapress

O estado de emergência patrocinado pelo governo para viabilizar a PEC não passa de truque retórico-orçamentário. Nunca faltaram alternativas previstas dentro das regras do jogo e do prazo legal para encaminhar os benefícios aos realmente necessitados, evitando, assim, agravar a crise fiscal e consequente dilapidação da economia.

A lista de prejuízos causados por tamanho atropelo populista é longa. A começar pela mensagem aos credores do país no exterior, que obviamente não têm motivos para levar a sério uma nação incapaz de respeitar diretrizes básicas como a regra de ouro, criadas precisamente para impedir o crescimento desorganizado dos gastos públicos.

O abismo apenas se aprofunda, agigantado por um inevitável ciclo vicioso: juros cada vez mais altos, inflação galopante, investidores e investimentos afugentados, geração de emprego e renda virando fumaça.

Não se trata de ignorar a grave crise da fome, de minimizar o desemprego, tampouco de negar a voracidade da inflação. Apenas não faz sentido fingir que esses desafios apareceram subitamente, quando, na verdade, foram criados pela incompetência e desídia do atual governo.

É tão irônico quanto triste constatar que, para além do abuso da máquina —não por coincidência, o "pacotão" caduca após a eleição—, o rombo nas contas públicas será responsável por erodir a própria capacidade desses agrados proporcionarem verdadeira diferença na vida das pessoas. Isso porque a espiral inflacionária rapidamente fará com que os R$ 200 transferidos hoje ao Auxílio Brasil se transformem em R$ 300 a menos amanhã.

Tudo isso já seria suficientemente dramático, mas o perigoso precedente de vale-tudo que a PEC concretiza torna o cenário ainda mais lamentável.

Falemos, pois, da postura atônita da oposição, incapaz de articular uma alternativa que não passasse pela violência produzida pela PEC. Depois, do nível de erosão institucional digno de república das bananas, que remete à tática das famosas e trágicas "leis delegadas" de Hugo Chávez.

Para completar o quadro tétrico, enquanto a PEC é flagrantemente inconstitucional, nossa Suprema Corte está sem alternativas nem ferramentas, condicionada por uma pergunta que teima em não ser respondida: aonde anda o procurador-geral da República, vértice fundamental do colapso em que nos encontramos?

Mais uma vez, o Brasil chafurda na ilusão de soluções fáceis para problemas difíceis, pretendendo fabricar riqueza a partir da miséria. Como no conto "A Nova Califórnia", do grande Lima Barreto, o país parece sob uma catarse coletiva, em que se crê possível transformar ossos em ouro.

Passada a catarse, a triste conclusão: "ouro é ouro e osso é osso", e, desgraçadamente, apenas ossos é que nos restam.


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