Blush, ou o crime do museu

O rubor era excessivo, vulgar, Diana parecia uma palhaça.

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Lucrecia Zappi
Nova York

A primeira vez que entrou no Museu Metropolitan em Nova York, ficou encantado com a amplitude das galerias, as armas medievais, a coroa andina, os sarcófagos egípcios. Voltou. Em pouco tempo dominou as salas, arriscando apontar onde estavam os Rubens ou o pequeno estúdio do duque de Montefeltro. Cumprimentava os funcionários do museu com a mesma camaradagem que reservava para os colegas da firma e até faxineiros. Era um cara boa praça.

Acabava de ser transferido para a cidade e estava bastante pendente do novo cargo, mas sua aventura interior, incerta, porém decisiva, morava no museu. Em Nova York não havia horário de almoço e, na fila de um food truck, afligia-lhe a ideia de que a poucos quarteirões estavam, uma vez vencidos a revista e o detector de metal, os tesouros do Met.

Semanas depois buscava as raridades do museu, e foi por acaso que se deparou com o pequeno quadro de Corot, "Diana e Actéon". Aproveitando que estava só, aproximou-se para examinar a expressão surpreendida da divindade caçadora quando ela, banhando-se nua no riacho na companhia de nereidas, foi vista por Actéon, um jovem caçador que passava por ali.

Pessoas sentadas em escadaria de construção em estilo eclético
Entrada do Met, o Metropolitan Museum of Art, em Nova York - Jeenah Moon/Reuters

"O infeliz me aparece no lugar e hora errados", avaliou, divertido, e conferiu no relógio se não estava atrasado, tornando a examinar o rubor na face da deusa, se era um susto sincero, assim como o de Actéon. "Seu olhar é inofensivo, portanto, não é ameaça à castidade da deusa", concluiu. Só a presença dos cães farejadores de Actéon o perturbou. Era um detalhe invasivo em um momento íntimo entre os dois, talvez porque a matilha simbolizasse perigo iminente.

Vexou-se do próprio inconformismo, mas essas mulheres de hoje, pensou, essas que ameaçavam seu próprio emprego, também tinham a capacidade de metamorfosear homens em comida de cachorro. Sentiu o rubor queimar seu rosto e percebeu, confuso, a semelhança entre sua carne e a da deusa. Ele até se viu no papel de Actéon. O rosto de Diana precisaria de mais ênfase para dar cor a esses sentimentos tão concretos.

Retornou no dia seguinte com um giz de cera distraído no bolso. Não viu câmera direcionada nele, mas por garantia chegou tão perto de Diana que quase sentiu seu hálito. Pintou suas bochechas de rosa. Satisfeito e vingado, voltou para a firma.

À noite veio a má consciência. Havia vandalizado uma pintura de 1836. O remorso e todas as coisas que o perseguiam ultimamente eram uma tortura. Fora acusado de assédio em seu primeiro dia de trabalho por elogiar a roupa de uma estagiária. E ela estava vestida!

Diana, influente e respeitada no Olimpo, precisava ter bom senso, não poderia simplesmente transformar Actéon em cervo para ser devorado pelos próprios cães. Os deuses podiam ser vingativos, mas naquela situação, naquela situação específica, só poderia ser uma histérica criminalizando um homem por uma espiada furtiva. Se Diana queria ser casta, não tinha nada com isso. Problema dela.

Fechou os olhos, mas pensou em seguida na sua transgressão e no castigo excessivo do caçador na pintura. Irritou-se com a troca entre Diana e Actéon porque naquele duelo de olhares o caçador viu a si mesmo, e aquela ousadia lhe custou a vida. Quis acreditar que a situação era só uma faísca de faroeste, o olho no olho. Mas não era. A epifania não o deixou dormir.

Desviou do food truck novamente, pensando no sanduíche quente na ciabatta, e entrou no museu com mais variantes de rosa no bolso. Desta vez, ele riscou as bochechas com força. Observou de longe. Melhor, mais corada. Pronta para uma festa. A fantasia de levar Diana para um bar bacana, perto do trabalho, fervilhou. Um drinque só, nada pessoal. Porque era linda e ele tinha um fraco por mulheres fortes.

Riu do contraste, observando o quadro, de perto e de longe, no papel do pintor, e ficou mesmo comovido, seduzido pela própria arte. Aos poucos, entendeu que passou do ponto. O rubor era excessivo, vulgar, Diana parecia uma palhaça. Quis remover, mas pessoas entraram na sala.

Não foi trabalhar naquela tarde. Estava preocupado com a aberração que havia produzido em nome da perfeição. Só queria a quantidade exata de blush. Foi a uma loja de ferramentas e pediu removedor de tinta a óleo.

De volta ao museu, com uma garrafinha de plástico no bolso que passou desapercebida, foi direto ao quadro. Não havia ninguém, mas quando jogou aguarrás no rosto de Diana e esfregou bem para que o rubor se dissolvesse em suas mãos, ouviu uma voz feminina suave atrás de si. Virou-se rapidamente.

"Uau," ela disse. Manteve o sorriso firme, mais de simpatizante que de simpática. "Qual é a causa do seu protesto?"

Diante do maravilhamento da jovem, não soube o que dizer. Correu, e atrás dele, a matilha de funcionários do Met. Antes de ser pego, deu-se conta de que a cor original de Corot, por sutil e imperfeita que fosse, continha a dose certa de rubor que explicava tudo.

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