Duas mulheres na porta do necrotério, tranquilas e cordiais, esperavam o legista para explicar a situação urgente: o morto era marido de uma e amante da outra. O pouco que lhe sobrou de posse foram oito dentes de ouro na boca. Pediam a gentileza de que alguém fizesse a extração rápido, sem burocracia e tampouco remorso, quatro para cada uma. Não iria doer, afinal, e precisavam tentar vender para pagar as despesas do enterro.
O cachorro caramelo, mais pontual que muita gente, não falta à missa das seis da tarde em uma cidade pequena de Alagoas. Baixa a cabeça no ato de contrição, criaturinha tão pura e sem pecados. Levanta e senta nas horas certas. O sinal da cruz não sei se faz. Seria demais e, ao mesmo tempo, não duvido de nada.
O senhor desempregado publica anúncio para o cargo de receptor de demônio nos cultos. Lista suas habilidades, de acordo com o tipo do encosto. Raivoso, magoado, assustador, ele daria conta de todos. Não tem CNPJ porque não achou sua categoria na lista de profissões do MEI, o que o impede de emitir nota fiscal de serviços.
São só três histórias da coleção de tantas que recebo todos os dias. Sou jornalista de formação, mas por não existir a tradição de uma editoria de Casos Insólitos na imprensa brasileira, migrei para a literatura.
Assim, aos poucos, construo uma história do Brasil dos mistérios, da cabeça do santo, da igreja enterrada, do prédio abandonado e misteriosamente ocupado, da mulher que desenterra noivas para revender vestidos. Da boca do povo, da memória dos que vivem de olhos abertos para o outro lado, nunca faltarão boas histórias. Coube a mim prestar atenção no invisível, nos milagres, na ordem inversa do mundo, no que acontece nas sombras e no contrapé. Não há profissão mais feliz do que essa minha, de viver escutando e transformando em literatura a alma secreta do meu Brasil.
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