Descrição de chapéu
Gabriel Rostey

Em São Paulo, nem com muletas o patrimônio histórico fica de pé

É prematuro demolir inteiramente um bem público em potencial, a toque de caixa

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Gabriel Rostey

Criador do podcast Conversas Urbanas, é consultor em política urbana, patrimônio cultural e turismo; ex-membro do Conselho Municipal de Política Urbana de São Paulo e ex-secretário-geral da Associação Preserva São Paulo

"Uma mansão eclética de 1913, área construída de 400 m², terreno de 640 m², próximo ao Metrô e à Avenida Paulista, com valor venal de R$ 7,5 milhões e reconhecido como bem cultural."

A glamourosa descrição é do casarão da rua Artur Prado, 376, de autoria do arquiteto Christiano Costa, abandonado há décadas e apelidado de "Casarão das Muletas" em razão das escoras colocadas em 2006 —consequência de ação judicial do edifício residencial ao lado, que buscou se prevenir de eventuais riscos por causa da deterioração desse patrimônio histórico que agora está sendo apagado pela Prefeitura de São Paulo.

A residência, ainda habitável, em 1990 foi inclusa no processo de tombamento aberto pelo Conpresp (órgão municipal de proteção do patrimônio) para centenas de imóveis no bairro da Bela Vista. Ali, o bem já estava provisoriamente sob proteção das leis de tombamento, que se dá a partir da abertura do processo, e só mudaria caso viesse a ser indeferido.

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Palacete na rua Artur Prado, na Bela Vista, corre risco de desabamento e, segundo laudo da Prefeitura de São Paulo, deve ser demolido - Rubens Cavallari/Folhapress - Folhapress


Nessas condições, o casarão foi vendido em março de 2002 para uma construtora e uma pessoa física, por R$ 317.649,94, equivalente a 55% do valor venal na época, de R$ 572.892,00. Os compradores sabiam das restrições para construir no local —e tudo indica que apostaram que o desvalorizado bem não viesse a ser tombado, o que tornaria possível a construção de um prédio. Havia o precedente de imóveis na mesma situação que foram demolidos sem autorização e não resultaram em punição, e cinco anos antes uma construção do outro lado da rua foi excluída do mesmo processo de tombamento.

Segundo relatos, a partir dali a deterioração do casarão se intensificou, com a retirada de portas, janelas e materiais de demolição —praxe antes da destruição de construções antigas. A descaracterização também se tornava um argumento pelo não tombamento, e já em junho a construtora solicitou alvará de demolição do imóvel. Não só o pedido foi negado, como em dezembro de 2002 o Conpresp decidiu pelo tombamento definitivo da Bela Vista.

Houve novos pedidos de demolição por parte dos proprietários e do edifício de apartamentos vizinho —matéria que chegou ao STF—, sempre negados. Após transferências de propriedade para uma empresa de restauração recém-criada e que tinha como endereço o próprio casarão, em 2014, o IPTU deixou de ser pago.

A inação reinava até que parte da fachada ruiu na tarde do último 13 de janeiro, o que impôs a interdição da lateral do edifício vizinho por parte da Defesa Civil.


É positivo que medidas tenham sido prontamente tomadas, mas com a repercussão em ano eleitoral, a prefeitura decidiu pela demolição integral antes de qualquer determinação judicial. Pareceres de profissionais apontam que não houve estudo técnico especializado em patrimônio que atestasse que a construção estava condenada, e nem o que poderia ser preservado. Há menos de três meses o Conpresp rejeitou mais um pedido de demolição, e é evidente que mesmo após o colapso de parte da fachada, o resto da construção não estava na mesma situação. Só um laudo independente pode sanar dúvidas.

Apesar do status do tombamento não ter sido alterado, a demolição —que precisa ser manual pela proximidade dos imóveis vizinhos— foi contratada por R$ 550 mil e segue à toda desde sábado, inclusive no domingo, sem atender qualquer protocolo condizente com bem cultural, como levantamento fotográfico e salvaguarda de ornatos.


O imóvel tem dívidas de IPTU e multas de cerca de R$ 2,5 milhões, mas, com novas penalidades previstas pelo desabamento, certamente o valor poderá ser suficiente para a adjudicação do bem pela gestão Ricardo Nunes (MDB). O próprio prefeito já confirmou esta intenção.

É prematuro demolir inteiramente um bem público em potencial, a toque de caixa, se nem está definido o que será feito depois. E se o Conpresp determinar a reconstrução? Por que protocolos básicos não estão sendo seguidos? É irônico que após resistir às tentativas dos proprietários, o casarão tombado seja destruído justamente pela prefeitura. Mas nem ela tem licença para eventuais crimes contra o patrimônio cultural.

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