Descrição de chapéu
Ivan Martins

Papai, eu quero ser como a princesa Elsa

Idealização étnica e estética provoca sofrimento em meninas brasileiras

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ivan Martins

Psicanalista, escritor e pai de três filhos

Por alguma razão que escapa ao meu entendimento, meninas são loucas pela princesa Elsa, a personagem do filme "Frozen" —tão loucas que querem ser iguais a ela. Usam o seu vestido azul, repetem no chuveiro a música que ela canta no filme —"Livre estou, livre estou!"— e sonham em ter, quando crescerem, os mesmos cabelos louros platinados.

Só que estamos num país de gente majoritariamente preta e parda, não? Além disso, sabemos que nem todas as meninas crescerão com o manequim esguio da heroína do desenho —e ainda menos com seu rostinho de proporções milimetricamente artificiais.

Imagem de Elsa no segundo filme de "Frozen"
Imagem de Elsa no segundo filme de "Frozen" - Reprodução

Começa a se esboçar assim, de forma precoce, a idealização étnica e estética que vai causar sofrimento a tantas meninas brasileiras no futuro: elas gostariam de ser como Elsa, mas tendem a ser mais parecidas com Moana, a princesa polinésia de outro desenho da Disney.

Historicamente, o tema da aparência e da feminilidade é território das mulheres, coisa que as meninas resolvem imitando ou rejeitando o modelo da mãe. Mas eu me pergunto, como pai, se nós, homens, não podemos ter influência positiva sobre a maneira como nossas filhas enxergam a si mesmas, ajudando-as a construir identidades estéticas menos opressivas.

Em tese, estamos num lugar privilegiado para isso. O pai presente é, depois da mãe, a grande referência afetiva da menina. É o primeiro homem da vida dela, uma presença carregada de afeição e de autoridade. Não é infrequente que o pai se constitua num modelo de parceiro a ser buscado pela mulher na vida adulta. Ele certamente ocupa uma posição de poder em relação ao psiquismo da filha e pode ajudar a conduzi-lo em diferentes direções.

Mas há um porém nisso: ao passar de "consumidor a fornecedor" —na frase canalha dos homens da minha geração—, o sujeito que vira pai de uma menina carrega consigo os seus preconceitos, e os projeta sobre a filha. Se ele pensar como a maioria, a menina será percebida como objeto estético, seu valor determinado pela sua aparência. Ele vai achar a filha linda, porque isso é parte do narcisismo dele, mas estará transmitindo a ela, subjetivamente, um valor danoso: o de que ser bonita é a coisa mais importante do mundo, a via privilegiada, talvez a única, para o amor dos homens e do mundo em geral.

As meninas têm sobrevivido a esse reducionismo há incontáveis gerações, mas com sofrimento. Crescem em desvantagem em relação aos meninos, que são julgados pelo conjunto das suas habilidades, não só pela aparência. Mesmo garotas que se encaixam nos padrões estéticos caem vítimas de ideais inatingíveis de magreza ou sensualidade, com terríveis consequências.

Talvez os pais desta geração possam ajudar a mudar esse quadro. Seu olhar amoroso e seus incentivos podem ser voltados à personalidade de suas filhas, sem privilegiar tanto os aspectos físicos. Isso parece contrário à nossa natureza, mas é apenas oposto à nossa cultura.

Também seria importante que nossas crianças crescessem em meio à diversidade estética, étnica e comportamental, aprendendo, afetivamente, que não há corpos ou jeitos de ser melhores do que os outros. As meninas continuariam amando Elsa, mas sem o imperativo impossível de serem iguais a ela.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.