Descrição de chapéu
Lucrecia Zappi

Recuo do mar aterroriza o planeta, escreve romancista

E se o mar desaparecido fosse a retomada de fôlego do oceano, antes de uma ou várias ondas devastadoras?

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Lucrecia Zappi

Escritora, tradutora e jornalista, é autora dos romances "Onça Preta", "Acre" e "Degelo". Prepara novo livro para 2025.

O efeito granulado veio da névoa na praia e as ondas distantes pareciam feno saltado. Sem visibilidade, o colosso de água não estava lá, só relevos vagos que lembravam barcos arrebentados pelo próprio peso, ou seriam baleias.

Trouxeram lamparinas da aldeia para procurar o oceano. Silhuetas de pessoas iam e vinham e gritos distantes sem rostos foram se reunindo. Eram supersticiosos, bruxas, magos e videntes, mas na névoa ninguém era ninguém, apenas vozes que se lançavam a adivinhar, em tom profético, o que acontecia.

Enquanto não houver mar, não vai ter peixe. Nem peixe para peixe.

É o apocalipse. O dilúvio. O interlúdio, alguém opinou. É o aquecimento global.

Onde?

Ali.

Praia com banhistas vista de cima - Niklas Ohlrogge/Unsplash /Niklas Ohlrogge/Unsplash

O dedo indicando o território vasto também soou fatídico. Objetos do cotidiano, como baldinhos de plástico, bicicletas carcomidas e até uma geladeira coberta de musgo renovou o interesse de quem costumava procurar só conchas. Quanta coisa, alguém exclamou. Melhor que em dia de Iemanjá. Ela que me perdoe.

E se o mar desaparecido fosse a retomada de fôlego do oceano, antes de uma ou várias ondas devastadoras? Ainda daria tempo de correr.

Dane-se o tsunami, desafiou um pescador mais velho, tentando furar a distância com os olhos apertados. Mirou na direção do horizonte granulado. Vou resolver isso.

De novo? Você não se lembra? Não vai fazer nada, disse seu irmão. Tá velho demais para ficar aí perdido na neblina. Cuidado que o mar pode voltar. O pescador velho riu, pensando em sua esposa que morreu afogada. Ela foi testar as ondas, deu nisso.

Feche os olhos. O pescador chegou a ouvir a voz dela antes do primeiro beijo e sentiu a mesma queda livre de uma montanha-russa no estômago. Agora, quinhentas mil luas depois, achava que via tudo, mas a presença da mulher morta o aturdia. Com a mão no ar, comprovou a suspeita.

Isso parece mais fumaça, o pescador disse para o irmão, incomodado. Lembrou que já tinha dito a mesma coisa, parecia que a própria voz boiava, vinda do passado.

Foi em busca dos barcos de pesca prestes a chegar à costa. Atrás dele, seguiram mais pescadores e gente que não tinha nada que ver com o ofício. Eram curiosos e outros que temeram ser chamados de covardes. A aldeia acendeu uma fogueira e a noite veio. De manhã, os que saíram em busca do mar, ainda não tinham retornado.

Duas mulheres sentaram na areia, oleadas como dois animais marinhos, dividindo um cigarro que lembrava um vaga-lume laranja.

Observavam as ondas invisíveis que irrompiam em camadas, e juntas ficaram ali, lembrando de como tinham se afogado há muito tempo, mas ainda seguiam saudosas demais para ir embora e esquecer de vez a areia e o estrondo da maré.

Lembra quando tentaram salvar os barcos?, uma perguntou para a outra. Tentaram salvar as casas, veio o tsunami e engoliu tudo?

E lembra da manchete? Recuo do mar aterroriza o planeta.

Mal sabiam que não só as cidades litorâneas do mundo inteiro se iriam, em questão de dias, mas depois o resto, levando consigo os jornais, as notícias, tudo.

Não foi a água, você sabe, mas onda de calor.

Pois é, essa é a velha notícia.

Tudo foi provocado pela onda de calor, mas as pessoas fingiram ignorância e até desafiaram o mar. Lembro desses tempos. Na América do Norte os incêndios e na América do Sul as enchentes. E depois inverteu, ou ficou tudo misturado.

O excesso de calor tornou o mundo mais hostil. Ajudou a provocar mais suicídios, violência armada, estupros, guerras civis, migrações. Mas eram casos isolados, lembra?

Perceberam por fim que a névoa era fumaça. Mas isso nos ajudou a nos conectar profundamente.

Pois é, brincou a outra, enrolando os cabelos.

Deixemos o oceano de lado. É um bicho insensível, desprovido de motivações emocionais, seus movimentos são apenas impulsionados pelas leis da física. Minha única admiração é que retém uma beleza própria, na explosão sonora, no mistério de suas profundezas, nas ondulações, mas bem longe do sofrimento humano.

O que importa é que hoje eu não comi nada, disse a segunda mulher. Nem um camarãozinho.

Para de se lamentar. Não adianta mais.

Você tem razão. Estou pronta.

Só sete ondinhas. Vamos.

As amigas voltaram a fazer o mesmo percurso em direção ao mar desaparecido. Acariciaram distraídas a água inexistente, cavando nas mãos um erotismo que só a vida traz. Calcularam os anos de praia vividos nos grãos de areia palpável nos dedos e, com receio e ternura, as duas almas se lembraram com nitidez de como o mundo acabou. Isso as fez sentir-se vivas.

Na névoa, uma delas mergulhou de cabeça na onda imaginária. A outra deu sete pulinhos, erguendo o vestido branco. Continuaram andando. Pararam só para examinar balões murchos e peças mecânicas retorcidas na própria ferrugem, sem se lembrar direito do uso de cada coisa. Entre exclamações distraídas e risadinhas, como se passeassem em um jardim botânico que só a humanidade poderia produzir, desapareceram na neblina.

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