Descrição de chapéu
Amir Lebdioui

Sincronizando o ritmo da transição justa no Brasil

Além de coordenação interna, país precisa de mais diálogo e integração com vizinhos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Amir Lebdioui

Diretor do Centro de Tecnologia e Gestão para o Desenvolvimento na Universidade de Oxford; autor de "Sobrevivência dos Mais Verdes: Transformação Econômica num Mundo Consciente do Clima" (https://www.cambridge.org/core/books/survival-of-the-greenest)

O icônico samba brasileiro é conhecido por sua complexidade, ritmo e harmonia de vários instrumentos e dançarinos se movendo em sincronia. Esse nível de coordenação é o que torna o samba tão bonito. Ele também oferece lições importantes para a aspiração do Brasil, defendida pelo presidente Lula em diversas ocasiões, de implementar a transição justa, no sentido de um novo modelo de desenvolvimento sustentável e inclusivo, ancorado em uma neoindustrialização em bases mais sustentáveis.

Sem um ritmo coordenado, o samba se tornaria um caos. Da mesma forma, a transição justa no Brasil exige uma coordenação mais sincronizada em nível federal, especialmente entre seus ministérios, assim como amplo diálogo com a sociedade civil e o setor privado. Mais do que nunca, a política industrial do Brasil precisa de um espaço institucional que faça as vezes do mestre de bateria.

Usina Fotovoltaica Flutuante (UFF) na represa Billings, em São Paulo; planta flutuante de energia solar conta com 10,5 mil painéis fotovoltaicos - Jorge Silva - 5.abr.24/Reuters - Eduardo Knapp/Folhapress

Desde o início do governo, em janeiro de 2023, o Brasil lançou uma série de políticas estruturantes relevantes para a ideia de transição justa. O programa Nova Indústria Brasil (NIB), liderado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, visa acelerar o desenvolvimento e aumentar o bem-estar a partir de investimentos coordenados em seis setores. O Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi criado para fomentar a infraestrutura em grande escala. O Plano de Transformação Ecológica, liderado pelo Ministério da Fazenda, oferece uma variedade de instrumentos financeiros para promover investimentos sustentáveis. O Plano Clima visa reduzir as emissões de carbono em diversos setores e promover a adaptação e resiliência em todo o Brasil. Há também inovações, como a Estratégia Nacional de Bioeconomia, liderada pelo Ministério do Meio Ambiente; o Plano Decenal de Expansão de Energia, coordenado pelo Ministério de Minas e Energia; e o Programa de Mobilidade Verde e Inovação, revelado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

À primeira vista, o governo brasileiro parece bem posicionado para juntar essas pontas em uma robusta estratégia de industrialização sustentável. O país parece determinado a lidar com os desafios da emergência climática e enfrentar os problemas ambientais, inclusive aqueles aprofundados pelo governo anterior, ao mesmo tempo que reverte retrocessos no combate à fome e à pobreza.

No entanto, por mais ousadas que sejam as políticas individualmente, elas não estão integradas em uma visão geral. Cada ministério está perseguindo sua própria agenda. Existe algum diálogo entre eles, bem como com a sociedade civil e o setor privado, mas nem sempre ele tem amplo alcance ou continuidade. E, como me disse um colega economista africano, "ter uma visão é necessário, mas ter muitas visões pode levar a alucinações".

A falta de coordenação entre essas grandes políticas estruturantes é problemática porque, enquanto há sobreposições e sinergias naturais entre essas iniciativas, também surgem contradições e escolhas difíceis (os "trade-offs"). Por exemplo, reduções de emissões podem conflitar com objetivos de desenvolvimento. Essas contradições exigem mediação, diálogo, orientação e alinhamento com objetivos gerais, dotados de metas. Além disso, desafios transversais como inclusão social ou a redução dos altos custos de capital dos projetos de energia limpa demandam um olhar estratégico e decisões que vão além de um único ministério.

A coordenação não é um desafio novo. No passado, as políticas de digitalização industrial do Brasil foram prejudicadas pela falta de coordenação (Labrunie, 2022). Por outro lado, em momentos em que houve maior coordenação, como durante o governo de Juscelino Kubitschek, avanços importantes foram alcançados. Mas hoje a necessidade de coordenação é ainda maior, dada a intensificação da emergência climática, retrocessos globais na agenda de desenvolvimento sustentável e o enfraquecimento da governança global.

Em contraste com a política industrial padrão, que historicamente era domínio quase exclusivo de um ministério de comércio e indústria, hoje a política industrial sustentável exige coordenação entre uma gama ampla de ministérios, assim como outros órgãos (especialmente Banco Central, BNDES e agências nacionais de inovação), de maneira que amplifiquem as sinergias.

Como harmonizar as iniciativas promissoras que o Brasil está lançando? Há diversas opções. O país pode se inspirar nos países do Leste Asiático, onde surgiram diferentes tipos de coordenação institucional para impulsionar políticas industriais sustentáveis e bem-sucedidas. Por exemplo, a Unidade de Planejamento Econômico da Malásia, situada no escritório do primeiro-ministro, exemplifica uma coordenação interministerial eficaz no coração do processo decisório federal.

A experiência da China também traz lições relevantes. Para minimizar tensões em torno de interesses conflitantes entre os formuladores de políticas energéticas e industriais, a China eliminou o Ministério da Energia por completo (o que talvez não seja uma opção replicável no Brasil) e estabeleceu uma comissão nacional de energia cujo mandato agora se estende além da geração de energia tradicional para incluir aspectos cruciais para a política industrial, como capacidade de manufatura, inovação tecnológica, esquemas de subsídios e projetos no exterior. Além disso, todos os ministérios centrais possuem escritórios estaduais para apoiar suas atividades regulatórias e de planejamento relacionadas às energias renováveis e à indústria sustentável.

É possível aproveitar espaços e capacidades existentes. No Brasil, a Casa Civil, localizada na Presidência da República, talvez seja o único órgão governamental com poder convocatório para trazer todos —tanto ministérios quanto atores externos— à mesa. É um espaço institucional capaz de guiar, monitorar e avaliar os rumos da transição, induzindo ajustes conforme as mudanças na conjuntura nacional, regional e global. Como um mestre de bateria conduzindo e às vezes corrigindo a percussão de um grande samba, ela pode assumir a liderança da transição justa no Brasil.

Uma tarefa complementar seria o fortalecimento e ampliação do papel dos conselhos interministeriais, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) e o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM), assim como o engajamento de entidades influentes como a Petrobras e governos estaduais e municipais.

Por fim, o Brasil não precisa apenas de coordenação interna, mas também de mais diálogo e integração com seus vizinhos. Os desfiles de samba mais grandiosos não são de apenas uma escola, mas de muitas. Da mesma forma, coordenar o desenvolvimento das cadeias de suprimento regionais na América do Sul pode abrir novas janelas para o Brasil e países da vizinhança. Além de construir um mercado comum maior, que permita economias de escala, países sul-americanos poderiam aproveitar seus ativos complementares (sejam abundância de minerais críticos, capacidade de manufatura, potencial de energia renovável, bem como proximidade com rotas comerciais importantes, como o Canal do Panamá e a Rota Bioceânica) para desenvolver um ecossistema industrial regional eficiente e globalmente competitivo em torno de tecnologias verdes.

Na prática, a coordenação regional continua cheia de desafios, especialmente em termos de alinhamento político, mas é possível avançar em iniciativas concretas, aproveitando as rotas de integração e infraestrutura, espaços multilaterais como o Mercosul e Unasul, e instituições de fomento como o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF).

O Brasil encontra-se numa encruzilhada. Se várias entidades governamentais continuarem dançando cada uma ao seu próprio ritmo, o país não irá aproveitar a atual janela de oportunidade para se transformar em uma potência sustentável. Por outro lado, acertando o ritmo, o país pode ganhar imensamente com a expansão e desenvolvimento de indústrias sustentáveis, com ampla geração de empregos dignos, renda e inovações tecnológicas. Seus vastos recursos naturais, matriz energética limpa e políticas públicas inovadoras podem ser aproveitados para gerar melhorias concretas no combate à fome, pobreza e desigualdades.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.