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Erminia Maricato

A democracia no Brasil e as eleições municipais

Novo futuro passa pela organização local, cooperativa, solidária e popular

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Erminia Maricato

Arquiteta e urbanista, é professora emérita da FAU-USP; ex-secretária municipal de Habitação de São Paulo, coordenou a criação do Ministério das Cidades e é membro da Rede BrCidades

Vivemos num mundo em profunda mudança. Há um aumento da desigualdade e da concentração de riqueza em grande parte do globo acompanhado da hegemonia do capital financeiro improdutivo. Os ataques à democracia, ao Estado de bem-estar social, às políticas públicas, à ciência, aos direitos trabalhistas e aos direitos humanos se somam a uma revolução nas comunicações que afeta a subjetividade, fortalece o individualismo e dissemina a desinformação. Como se isso não bastasse, o aquecimento do planeta nos coloca diante de uma crise ambiental sem precedentes.

Nesse contexto, o Brasil carrega suas especificidades: as marcas de mais de 300 anos de domínio colonial e mais de 350 anos de trabalho escravizado de africanos. Foi o país das Américas que mais recebeu africanos escravizados. Esse passado ainda se reflete na profunda desigualdade social, econômica e territorial, que está entre as maiores do mundo. Ela é especialmente extravagante nas cidades, onde vivem mais de 85% da população, sendo que 30% do total em apenas 10 regiões metropolitanas. É nelas onde as questões do cotidiano são mais sentidas: falta de saneamento básico, mobilidade que impõe custo alto e tempo excessivo nos transportes, violência decorrente da ausência do Estado e presença de grupos armados nas periferias, entre muitos outros problemas. Mas é na falta de acesso à moradia legal, adequada e bem localizada que reside o maior dos problemas.

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Favela Capadócia, na Vila Brasilândia (zona norte), onde há maior concentração de moradias em alto risco em São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress - Zanone Fraissat/Folhapress

A informalidade ou ilegalidade na produção das periferias, especialmente nas metrópoles, é mais regra do que exceção. Leis e planos avançados convivem com uma realidade atrasada, favorecendo um mercado imobiliário restrito à minoria da população e altamente especulativo. Expulsa das áreas valorizadas pelo mercado formal, sem acesso a uma política regular de moradia social, essa população ocupa áreas ambientalmente inadequadas ou lotes irregulares e constrói sua própria moradia. Essa forma de produção da habitação para as camadas de baixa renda é causa das frequentes tragédias ambientais relacionadas a enchentes e desmoronamentos.

Apesar da regressão social, econômica e ambiental, podemos vislumbrar um caminho de esperança ao trazer de volta a memória de uma experiência vivida num passado recente: o ciclo das prefeituras democráticas e populares. Esse ciclo aconteceu principalmente entre 1978 e o final dos anos 1990, mas alguns governos municipais extravasaram esse período.

Ele foi marcado por muita participação social nos bairros e propostas governamentais inovadoras, originais e adequadas à nossa realidade de país periférico do capitalismo. Algumas das políticas públicas municipais desenvolvidas nesse período ganharam visibilidade mundial: orçamento participativo; mutirões habitacionais, urbanização de favelas e regularização fundiária; corredores de ônibus, tarifas sociais e tarifa zero nos transportes públicos; centros de educação em tempo integral (CEUs, Cieps); segurança alimentar e restaurantes populares; centros de cultura...

O SUS começou a ser implementado nesse período. Foi quando se deu também a redemocratização do país e a conquista da Constituição Federal de 1988. Dentre os governos municipais do ciclo que ficaram conhecidos mundialmente podemos citar Luíza Erundina, em São Paulo (1989), Olívio Dutra, em Porto Alegre (1989) e Patrus Ananias, em Belo Horizonte (1993). A lista é longa e cobre todas as regiões do país.

Trata-se de recuperar a memória dessa experiência histórica fomentando a participação capilarizada nos bairros, escolas, praças e igrejas, em torno das dificuldades vividas no cotidiano e que nos são comuns. Nessa proximidade, tece-se o pertencimento, afirma-se a cultura, constrói-se a memória coletiva e luta-se contra as desigualdades sociais em suas múltiplas dimensões.

A construção de um novo futuro para a infância e a juventude, para a população negra, para as mulheres e para a sustentabilidade do ambiente construído ou natural passa pela organização local, cooperativa, solidária e popular.

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