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Renato Stanziola Vieira

Premiação da barbárie: as feridas reabertas do massacre do Carandiru

É difícil acreditar na decisão do TJ-SP que considerou constitucional o indulto aos PMs

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Renato Stanziola Vieira

Mestre em direito constitucional (PUC-SP) e mestre e doutor em direito processual penal (USP), é presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)

É com profundo pesar que assistimos à recente decisão proferida pela maioria dos integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que considerou constitucional o indulto concedido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro aos policiais militares envolvidos no massacre do Carandiru. Como membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), nascido exatamente em reação ao bárbaro assassinato em massa praticado por agentes do Estado contra pessoas presas ocorrido em 1992, não podemos deixar de expressar indignação e tristeza diante de um ato que reabre feridas que nunca se cicatrizaram por completo.

Essa decisão não apenas desafia o sentido de justiça das famílias das vítimas de 1992, mas também ameaça os princípios fundamentais do Estado democrático de Direito, especialmente no que se refere ao respeito incondicional aos direitos humanos.

Ato em homenagem aos mortos no massacre do Carandiru - Nelson Almeida - 8.abr.2013/AFP

É difícil acreditar que um prêmio, disfarçado de indulto, tenha sido prestigiado pela maioria dos integrantes do órgão julgador no TJ-SP, inclusive chegando às raias de passar da análise da constitucionalidade do ato do ex-mandatário do país para tecer considerações de mérito, justificando —mais uma vez— aqueles mesmos atos praticados por agentes do Estado. Para quem, como nós, luta diariamente pela defesa dos direitos humanos desde 1992, é devastador ver a validação de um indulto que, mais do que uma medida jurídica, representa um retrocesso moral e ético.

O massacre do Carandiru, que resultou na morte de 111 detentos, foi um ato de extrema violência e desrespeito à dignidade humana, e não há como concordar que os responsáveis por essa atrocidade sejam agraciados com o decreto, agora placidado pela maioria dos julgadores do órgão especial do TJ-SP.

O indulto, assinado por um ex-presidente que jamais escondeu sua admiração pelo regime ditatorial, que já se valeu do uso enviesado do mesmo mecanismo em outra oportunidade e que patrocina diversos movimentos autoritários, é um enaltecimento à violência como política oficial.

Aqueles que, no TJ-SP, se coonestaram com as razões do indulto estimularam não apenas a antecipação de uma discussão constitucional fundamental, mas também minaram a credibilidade da Justiça brasileira. O mesmo decreto de indulto do ex-presidente tem ainda sua constitucionalidade questionada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 7.330, proposta pela Procuradoria-Geral da República, cujo julgamento não está concluído. A decisão do tribunal paulista, que se adiantou a esse processo em curso no órgão guardião de nossa Constituição, dá margem a interpretações perigosas e enfraquece o combate a violações de direitos humanos no Brasil.

Ao longo da trajetória do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, lutamos pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com apego à dignidade da pessoa humana, conforme preceituam os artigos 1ª, inciso III, e 3º, inciso I, da Constituição da República. Somos atentos, como parte da sociedade civil, às obrigações convencionais e à prevalência que deve existir, dentro e fora do país, dos direitos humanos. É assim que se prestigia a democracia e o Estado de Direito.

A decisão da maioria dos membros do órgão especial do TJ-SP, no entanto, parece ignorar suas próprias implicações éticas e sociais, privilegia o desvio de finalidade no uso da medida de graça do presidente da República, favorecendo a cultura de impunidade que ameaça os valores que tanto prezamos.

Ao validar o indulto presidencial, os membros que formaram a maioria no órgão especial do TJ-SP deram duro golpe no núcleo essencial do Estado democrático de Direito do Brasil. A decisão é um ataque direto aos direitos humanos das pessoas presas, despreza a dor das famílias das vítimas, afronta a todos que trabalhamos incansavelmente para que essas tragédias não sejam esquecidas nem repetidas.

Mais uma vez, estamos de luto. Não apenas pelas vidas brutalmente ceifadas em 1992, mas pela perda da confiança na Justiça brasileira, pelo distanciamento —ressalvadas as vozes discordantes dentro do órgão especial, firmes com o compromisso de construção de um país mais pacífico, civilizado e solidário— dos valores mais caros ao Estado democrático de Direito.

O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais foi fundado em reação ao massacre do Carandiru, com a missão de defender os direitos humanos e promover justiça. Por isso, estamos irmanados aos desembargadores que, ao se posicionarem contra essa decisão, demonstraram compromisso inabalável com a observância dos direitos humanos das pessoas presas.

A validação do indulto lança sombra perigosa sobre o futuro do sistema judicial. É como se a mensagem fosse de que a violência do Estado pode ser ignorada, perdoada e até mesmo premiada.

Essa decisão do TJ-SP não é um simples ato jurídico. Ela representa uma escolha sobre os valores para a sociedade brasileira. Nós, do IBCCrim, que nascemos dos ideais inclusive de desembargadores e desembargadoras do próprio Tribunal de Justiça de São Paulo, além de tantos pesquisadores em Justiça criminal, nos recusamos a ficar em silêncio. Esse é o segundo luto, do IBCCrim e das famílias das vítimas desde 1992.

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