Taylor Swift e a romaria da autodescoberta no West Village

'Ela só queria reviver o enredo de Taylor', escreve romancista sobre desejo de fã da estrela pop

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Lucrecia Zappi

Escritora, tradutora e jornalista, é autora dos romances "Onça Preta", "Acre" e "Degelo". Prepara novo livro para 2025.

Soube imediatamente que se tratava de uma Swiftie quando ela me perguntou onde estava a rua Cornelia. Mais atrás, vinha a família. Se pudesse, a adolescente de sandálias e meias pretas, cabelo cacheado e óculos redondos, teria deixado em algum café os pais, que queriam ver "arquitetura", assim como o irmão mais novo (peso morto).

Giovanna explicou, sem jeito. "É que as ruas aqui dão nó. Especialmente a West 4". Sorriu com certa cumplicidade quando revelei que não era a primeira vez que me pediam as coordenadas de Taylor Swift. Ela podia imaginar, se a música era de 2019. A romaria de dar cara a uma canção começou discreta durante a pandemia, mas com a ascensão astronômica da pop star, o turismo tornou-se mais enérgico.

A imagem mostra duas pessoas interagindo, com foco em seus braços. Uma pessoa está colocando uma pulseira colorida no pulso da outra, que já possui várias pulseiras. O ambiente parece ser de um evento social, com outras pessoas ao fundo e alguns objetos visíveis, como uma câmera.
Fãs da Taylor Swift trocam as chamadas pulseiras da amizade, enquanto aguardam show do ‘The Eras Tour’ - Justin Tallis - 15.ago.24/AFP

Simpatizei com a moça tímida e superprotegida dos subúrbios de Florença, que parecia pedir desculpas por vir estritamente acompanhada dos pais em sua missão novaiorquina de autodescoberta. Seu voyeurismo não tinha o perfil consumista dos fãs de Carrie Bradshaw, nem parecia curtir a ideia de idolatrar a fachada da casa de "Friends".

Ela só queria reviver o enredo de Taylor, o de um coração adolescente machucado. Era o que faltava para completar a sua agenda na cidade. E a jovem Giovanna —com o perdão da redundância— vinha com essa missão. Os pais, exaustos, classificaram o bairro de belíssimo. Achei a situação divertida e convidei-os para um copo d’água. Nunca tinha dado passagem a estranhos assim. Giovanna disse que já voltava, os pais se levantaram, mas a filha disse saber aonde ia. E conseguiu se livrar dos pais, eu que cuidasse deles!

Em casa, a mãe tinha na bolsa entreaberta "Doze Contos Peregrinos" do Gabriel García Márquez, o que me pareceu acertado para um dia de peregrinação. Ficamos conversando quando o pai, de repente, notou que duas horas tinham se passado.

"E a ragazza, cadê?"

Agradeceram enfaticamente a acolhida, trocamos número de telefone e partiram em direção à rua Cornelia. Fechei a porta, aliviada de que a visita já se ia, e foi só mais tarde, já de noite, que vi a chamada perdida e cinco mensagens desesperadas. Nada da filha.

Ia telefonar para eles, mas de repente, a campainha tocou. Giovanna. Eu a encarei, irritada com seu jeitão inocente à porta. Disse que ligasse já para os pais, e depois do vaivém dramático ao telefone, ela pediu, envergonhada, se eu lhe chamaria um carro, justificando que celular morreu na rua.

"Foi a algum show dela?", perguntei, tentando animá-la e testando o grau de devoção na escala Swiftie.

"Eras Tour. Milão, 14 de julho de 2024", ela disse, sem aparentar emoção alguma, como uma data histórica remota, tipo a queda do império romano. "A questão é que minha vida mudou."

Antes de ir embora, Giovanna quis me contar que começou a ouvir Taylor Swift porque se sentia obrigada. "Pertencer a um grupo, os comentários que você deixa, o número de seguidores. Você sabe." Não queria bancar a tia, questionando sua jornada nas redes sociais, e nada daquilo era novidade, mas ainda assim era triste o seu dever de seguir Taylor, como um protocolo adolescente.

Com o álbum "Folklore", em 2020, ela se descobriu na pandemia, em pleno isolamento. Uma música, de um ano antes, tocou mais fundo: "Cornelia Street". Por causa da canção, quis imaginar —"e minha vida ficou mais leve e profunda, sabe?"— que seus passeios ocorriam em uma manhã chuvosa, sem rumo, resgatando a vida das ruas, mesmo que o giro fosse para um parque ou para a faculdade.

O curioso é que em "Cornelia Street", Swift diz que não volta a pisar no lugar pela lembrança triste que traz, mas incentiva os fãs ao contrário. Olhei para Giovanna. "Não vai me dizer que teu ex também se chama Joe Alwyn." "Talvez?", Giovanna riu. "Eu sei que é esquisito, mas revivo a dor dela."

A essa altura tinha me arrependido de instigar o papo sobre a moça que queria ser como os outros, mas se superou ao ambicionar um sentido maior, guardando os fones de ouvido na bolsa para não ignorar o mundo. "Giovanna. Teus pais estão te esperando." Ao sair de casa ela me deu um abraço, selando sua viagem sentimental, mas quis enforcá-la quando me perguntou: "Sabe onde consigo um vinil da Taylor?"

Dia seguinte, fui à tal rua para entender melhor Giovanna. O desafio era sentir saudades emprestadas de outra pessoa. Consegui resgatar uma lasquinha latejante de um amor perdido, mas o experimento não parava aí. Na letra, Taylor diz que não volta mais à Cornelia. Essa era fácil: nem eu, que não desassociava mais a rua de groupies sedentas por experiências reais. Vampiras sem telas! Mantive o otimismo heroico de uma Swiftie, dobrando a esquina com a máxima de que sonhar é sempre possível.

Pensei no livro que a mãe trazia do Gabo. Lembrei de um dos contos, da velha María dos Prazeres. Pressentindo que fosse morrer, e com medo de não ser recordada, ensina seu cachorro o caminho do cemitério para chorar sobre a sua tumba. María não morre tão cedo, mas percebe que a toda a vida valera por este instante, o de vivenciar a própria dor programada em outro ser.

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