Descrição de chapéu
Lucrecia Zappi

Racismo provoca expulsão em aeronave, escreve romancista

Conforme os passageiros foram entrando, alguns já não sabiam mais qual tinha sido a ofensa, mas o cumprimentaram porque também apoiavam as minorias

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Lucrecia Zappi

Escritora, tradutora e jornalista, é autora dos romances "Onça Preta", "Acre" e "Degelo". Prepara novo livro para 2025.

"Desculpe, essa fila é para a classe executiva", avisou a mulher norte-americana.

"O ambiente aqui é hostil ou estou paranoico? Pertenço à classe executiva", respondeu o japonês. Talvez ela fosse mesmo preconceituosa, ou só quisesse ajudar. Mais do que suas palavras, era o olhar da mulher. Deu um passo atrás, surpreendido com a própria reação explosiva.

Usava um terno bem cortado, e mesmo que fosse por uma fração de segundo, remoeu calado a distância que tinha tomado há muito tempo das questões de raça e até de identidade, enquadrando a mulher de costas, sentindo seu perfume lento e adocicado invadir seu espaço. Não se imaginava no portão de embarque no Charles de Gaulle, capturado por uma observação de uma qualquer que tentava colocá-lo em seu lugar.

A imagem mostra um avião em voo, com as luzes acesas, contra um céu com nuvens escuras e um horizonte em tons de rosa e azul
Avião se aproxima de aeroporto - Cole Burston - 30.jun.24/Getty Images via AFP

E seu lugar, qual era mesmo? Conferiu o cartão de embarque, assento 2A. Ironicamente estava na segunda fila. Tentou relaxar, pensando no champanhe que lhe ofereceriam ao entrar na aeronave, mas que recusaria porque lhe daria na certa outra dor de cabeça.

Era óbvio que ela o vira na sala VIP. Reparou nela porque a mulher tentava em vão resolver o nó de sua echarpe, desencontrando as pontas de propósito para dar-se um ar casual. Por fim foi ao banheiro e voltou com o lenço de seda sobre a cabeça, ao estilo de Grace Kelly. Era um nó ansioso sob o queixo, talvez de quem não viajasse com frequência, e por isso marcasse território.

Concluiu que era uma norte-americana clássica —não que todas fossem assim—, mas treinada para competir, pegar no pé de quem não se parecia a ela. Perguntou-se em que capacidade tinham implementado a proibição da burca e da abaya na França e imaginou Grace Kelly com excesso de peso em um burquíni. Logo ele, um gordofóbico não assumido.

Esses pensamentos voltaram quando foi chamado no guichê. Tinham feito uma confusão com seu nome. Eram dois, sim, Nakazawa e Smith, e detestava quando lhe perguntavam qualquer detalhe sobre sua vida. Morava em Nova York havia uma década, o que o tornava um cidadão do mundo, tendo deixado seu passado de reverências profundas para sempre. Era igual a todos.

Falava com os comissários de bordo quando abriram a fila da classe executiva, e lhe disseram que, por favor, seguisse adiante. Grace Kelly se adiantou, estivera na fila antes dele. Arrancando o lenço da cabeça, indignada, precipitou-se sobre os da companhia aérea. "Não acredito que esse chink vai passar na minha frente." Quem estava próximo ouviu a ofensa, e o encararam, esperando revide.

Em toda a sua vida, Nakazawa fora incapaz de reagir a maldades, calculadas na rapidez, para intimidar o ofendido. Só porque quase não chegara a tempo no aeroporto, culpa de um motorista turco, estava irritado. Queria o enfrentamento público: "Chink é um termo ultrajante, pejorativo. É como me chamar de china, ou até mesmo amarelo", ele disse, cuidando do ar polido. "Ela não faz ideia de quem sou, nem de onde venho. Não me sinto seguro viajando com ela."

O burburinho durou pouco e a sentença foi imediata. A companhia a impediu de embarcar. Sem remorso, Nakazawa marchou sob aplausos ao avançar pela passarela até o avião. Não era momento para comemorar, pensou, a fila tinha que andar, mesmo quem ganhara uma luta em nome da minoria. Perguntou-se, em seguida, qual minoria, se japoneses como ele representavam uma classe privilegiada.

Sentiu um acanhamento adormecido por ter se sobressaído na multidão, e ao mesmo tempo detestou seu ar condescendente. Também tinha preconceitos e desejou por um instante perdoar Grace Kelly. Por ser gorda. Conforme os passageiros foram entrando, alguns já não sabiam mais qual tinha sido a ofensa, mas vieram triunfantes e o cumprimentaram porque também apoiavam as minorias sexuais e de gênero, LGBTQIA+, com todas as letras e seus sinais.

Alguém até sugeriu que a mulher deveria ser queimada em fogueira pública. Nakazawa Smith encolheu-se no assento. Já tinha causado um inconveniente, e pior, a si mesmo, porque detestava conflitos. Só queria saber se sua refeição kosher estava reservada —a qualidade da carne não era como em Kobe, sua terra natal, mas bem melhor do que o que costumavam servir no avião. Não quis pedir alto por medo de que o acusassem de ser pró-Israel. Nada contra o país.

De repente, ouviu a comissária de bordo dizer que a decolagem atrasaria porque retiravam as malas de Grace Kelly. Ficaram mais de uma hora na pista e o incômodo geral cresceu, e para aliviar o atraso vieram anedotas relacionadas a preconceitos. No assento de trás, alguém contou o caso de um sapateiro.

"O transsexual foi pegar o sapato do conserto e o sapateiro disse que só entregava com recibo. Sabe aquele homem honesto com cara de Gepeto, bonzinho, com as unhas pretas de tanto trabalhar? Depois de muita briga, o trans se vingou na internet. Postou fotos do lugar e acabou com o negócio, que o sapateiro era preconceituoso, sabia muito bem de quem era o salto alto."

Nakazawa Smith achou que o observavam e quis relaxar em sua poltrona. O mundo estava maluco, cheio de bandeiras e de covardes enrustidos como ele. Afivelou o cinto de segurança e ficou enterrado ali, invisível, em seu closet executivo. Ofereceram champanhe. Ele disse não, obrigado, e como se o assunto não fosse mais com ele, perguntou quanto tempo se atrasariam. Tinha uma reunião importante ao desembarcar em Nova York.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.