Descrição de chapéu A mulher da casa abandonada

Podcast A Mulher da Casa Abandonada discute a escravidão contemporânea

Quinto episódio mostra que histórias de exploração como a dos Bonetti persistem no Brasil

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São Paulo

O quinto episódio de A Mulher da Casa Abandonada, podcast da Folha que investiga o passado de crimes por trás de uma mansão degradada em São Paulo, extrapola a história de Margarida Bonetti e das acusações contra ela na Justiça americana.

Casos de pessoas mantidas em situação análoga à escravidão, como o narrado nesse podcast, chocam, mas infelizmente não são raros.

Por isso, a série faz uma pausa nos desdobramentos dos Bonetti e da casa abandonada para contar episódios similares que aconteceram no passado recente em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e em Santos. Além disso, pesquisadoras que estudam a escravidão contemporânea explicam por que o Brasil é um país que explora mulheres pretas, e como esses crimes sobreviveram até 2022.

O quinto episódio do podcast já está disponível de graça nas principais plataformas de áudio, como Spotify, Apple Podcasts e Deezer. A transcrição do roteiro está disponível no fim deste texto. Todas as quartas-feiras, às 7h, um novo episódio vai ao ar, até 20 de julho.

A capa do podcast tem o desenho de um casarão, em branco e preto. A imagem escorre até o nome do programa: A Mulher da Casa Abandonada
O podcast A Mulher da Casa Abandonada investiga a vida de uma brasileira que foi procurada pelo FBI - Editoria de Arte

A Mulher da Casa Abandonada é apresentado e escrito por Chico Felitti, autor do livro "Ricardo & Vânia", que narra a história de vida de um artista de rua conhecido como Fofão da Augusta, e que foi finalista do Prêmio Jabuti de 2020. Felitti também criou e apresenta "Além do Meme", série documental em áudio exclusiva do Spotify —eleita o Podcast do Ano pelo Prêmio Splash UOL em 2020.

A série tem participação da atriz e dramaturga Renata Carvalho, que interpreta em português as entrevistas feitas em inglês, e de Magê Flores, que apresenta o Café da Manhã, podcast diário da Folha, e também coordena a produção de A Mulher da Casa Abandonada. A edição de som do podcast é de Luan Alencar, e a produção é de Beatriz Trevisan e Otávio Bonfá.

Transcrição do quinto episódio

Outras Tantas Mulheres

Este podcast é uma reportagem que se baseou em registros de um caso de notório interesse público. Procurou ouvir todos os envolvidos e deu espaço às versões dos que se manifestaram. Essa série não é uma investigação policial, nem um processo judicial. A Folha condena qualquer tipo de agressão e perseguição contra as pessoas aqui retratadas.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

É 27 de novembro de 2020, uma sexta-feira. Uma empregada doméstica está voltando para o apartamento onde trabalha, e mora, no centro de Patos de Minas. O imóvel é avaliado em 600 mil reais. Ela tinha saído para comprar tomates a pedidos do patrão, um professor universitário da família Milagres Rigueira. Os sobrenomes são da elite tradicional de São Miguel do Anta, também em Minas Gerais.

Quando se aproxima da entrada do prédio, ela encontra uma multidão na calçada. A portaria está tomada por agentes da Polícia Federal e fiscais do Ministério Público do Trabalho.

Estão lá para investigar uma denúncia de trabalho análogo à escravidão. Sem entender nada, a empregada doméstica percebe que a atenção e os olhares começam a se voltar para ela. As autoridades a cercam e não a deixam entrar.

[Madalena] Aí eu estou vendo um monte de gente lá embaixo. ‘Que negócio é esse? Policial…’. Aí eu estou vendo um monte de gente, me cercaram e não deixaram eu ir.

Porque ela era a vítima do crime que tinha feito eles irem até aquele prédio: Madalena Gordiano, de 46 anos, olhos escuros e cabelos curtos da mesma cor. Uma mulher que passou 38 anos em condições de exploração. Os agentes entram no apartamento de quatro quartos onde Madalena cuidava das tarefas domésticas todos os dias, a partir das cinco da manhã. Sem receber salário ou qualquer outro benefício trabalhista. Sem poder pegar um sabonete, shampoo ou papel higiênico da despensa.

[Madalena] Aí eu entrei com eles, ‘pode entrar todo mundo’. Entrei, toquei o interfone, aí a mulher estava viajando. Aí eu fui lá, toquei o interfone, falei assim ‘ô, Dalton, tem um monte de gente aqui’. ‘Pode subir, pode subir tudo’. Mandou todo mundo subir. Ele levou susto, quando chegou essa gentaiada lá dentro. Porque tinha polícia, né?

O Dalton de quem ela fala é Dalton César Milagres Rigueira. O homem que ela chamava de patrão, e que explorava o trabalho dela num apartamento de quatro quartos. Mas Madalena dormia em um quinto: um quartinho de paredes brancas, sem qualquer decoração, com espaço suficiente para uma cama de solteiro e um guarda-roupa pequeno. Sem janela. Um tradicional quarto de empregada. Madalena também não tinha permissão para sair de casa quando quisesse, muito menos para visitar familiares e ter amigos. Ouvia xingamentos com frequência.

O apartamento era do casal Dalton e Valdirene Rigueira. Mas eles não foram os primeiros a explorar Madalena.

[Madalena] Aí eu saí. Saí com polícia. Saí com tudo na vida. Chorando, mas saí.

Vamos voltar para São Paulo e encontrar a mulher da casa abandonada em breve. Mas, antes, vamos mostrar que o caso investigado nesta série é chocante. Mas está longe de ser o único. Neste episódio, a gente vai investigar casos que aconteceram em lugares distantes do Brasil. Um, no Triângulo Mineiro. Outro, em Santos. Um terceiro, no Rio de Janeiro. Essas histórias todas se parecem com o crime atribuído à mulher da casa abandonada. Porque a exploração de trabalho análogo à escravidão acontece em casas do norte ao sul do Brasil. Ainda. Em 2022.

VINHETA DA ABERTURA

Eu sou Chico Felitti e esse é o quinto episódio de A Mulher da Casa Abandonada, um podcast da Folha que investiga a figura misteriosa que mora numa mansão em pandarecos em um dos bairros mais ricos de São Paulo. Uma mulher que se esconde atrás de uma camada de pomada branca, mas que toda a vizinhança sabe quem é. Margarida Bonetti, a brasileira que fugiu de um julgamento no qual era acusada de explorar, agredir e negar auxílio médico a uma empregada doméstica que ela levou para os Estados Unidos.

Quinto episódio: Outras tantas mulheres.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Estamos em Minas Gerais. Pode ser que o nome de Madalena te soe familiar. O caso dela ficou conhecido em dezembro de 2020, quando foi revelado em uma reportagem no Fantástico, na TV Globo.

[reportagem da TV Globo sobre o caso de Madalena Gordiano]

Com cuidado, a Madalena vai conhecendo novas paisagens e experiências que são cotidianas para muitos de nós, mas inéditas para ela. Como andar em um parque, livre.

Madalena Gordiano passou os últimos 38 anos sem poder comandar a própria vida.

A história mexeu com um país inteiro, e Madalena virou um símbolo de liberdade. Até hoje, um ano e meio depois da notícia ser destaque na imprensa, ela é reconhecida na rua.

[Madalena] Aí eu tava lá em Brasília, o ciclista de… ciclista, de bicicleta, passou assim ‘Eeeei Madalena, liberdaaaade Madalena!’.

Se você viu a reportagem ou as outras matérias que saíram sobre o assunto, vai se lembrar de que Madalena não viveu a vida inteira no apartamento de onde foi resgatada em Patos de Minas. E que Dalton e Valdirene não foram os primeiros a reduzi-la a situação de trabalho análogo ao de escravo. Tudo começou quando Madalena tinha oito anos e, perdida de fome, bateu na porta da casa de uma mulher em São Miguel do Anta para pedir um pedaço de pão. Essa mulher era a mãe de Dalton. Maria das Graças Milagres Rigueira, uma professora. Em vez de apenas dar comida para Madalena menina, Maria das Graças, que era branca, se ofereceu para adotá-la. E a intenção não era altruísta, de compaixão. Na verdade, não tinha nada de caridoso naquela atitude.

A proposta era, antes de tudo, uma condição: Maria das Graças só daria comida à criança se ela fosse morar na casa dela e se pudesse adotá-la. Era um acordo de trabalho oculto. Nas letras pequenininhas do contrato invisível, estava a descrição do papel a ser cumprido pela criança naquela casa.

A mãe de Madalena, vulnerável e com mais oito filhos para cuidar, foi convencida e entregou a filha para Maria das Graças e Vanir Rigueira, o marido dela.

[Madalena] Aí eu fui lá pra morar com ela. Aí me chamou pra trabalhar. Por lá eu fiquei.

A partir desse momento, a menina de oito anos deixou de ser criança. A adoção prometida não foi mais longe do que uma jogada de marketing e, logo depois de se mudar para a casa de Maria das Graças, Madalena começou a ter que cuidar de todos os serviços domésticos. A família Milagres Rigueira também a tirou da escola e Madalena passou as próximas quase quatro décadas com o direito de estudar negado. E sem acesso a qualquer tipo de informação.

[Beatriz] Trabalhava o dia inteiro?

[Madalena] O dia inteiro.

[Beatriz] Só trabalhava?

Essa voz junto com a Madalena é da Beatriz Trevisan, que é produtora dessa série e foi até Uberaba para se encontrar com ela. É em Uberada que Madalena mora atualmente, mas a gente vai chegar no presente dela daqui a pouco. Beatriz conversou com Madalena num sábado à tarde em um parque, então os gritos que você vai ouvir no fundo da conversa são crianças se divertindo num balanço.

[Madalena] Só trabalhava. E não tinha hora extra. Não podia sair muito pra rua, nada.

Madalena só trabalhava. Ela não conversava com pessoas de fora da família. Tanto que não fez nenhuma amizade durante quatro décadas. Vivia reclusa.

[Beatriz] A vida inteira a senhora nunca teve amigos assim, nada?

[Madalena] Não, ela não deixava não.

[Beatriz] Não deixava?

[Madalena] Não deixava.

[Beatriz] Uhum. A senhora não podia conversar com ninguém?

[Madalena] Não.

[Beatriz] Era só dentro de casa?

[Madalena] Dentro de casa. Ela proibia eu de conversar com os outros.

É difícil de conceber como é viver dos oito aos 46 anos sem autorização para conversar com outra pessoa.

[Taís] Quando eu conheci ela, eu tentava absorver alguma coisa sobre a história dela, né? Até pra questão do trabalho mesmo. Ela só respondia sim ou não. Mal conversava com a gente. Muito pouco.

Essa é Taís Teófilo, conselheira tutelar que acolheu Madalena na época em que o caso dela foi descoberto. Uma mulher de cabelo nos ombros e de sorriso fácil. É com Taís que ela mora em Uberaba, desde dezembro de 2020.

Além da jornada exaustiva de trabalho e da não remuneração, uma empregada doméstica resgatada de situações de exploração extrema também costuma ouvir xingamentos e ordens de trabalho em tons agressivos.

[Madalena] O tempo todo xingando a gente e mandando a gente fazer as coisas o dia inteiro, sem parar.

Madalena precisava alcançar a satisfação total dos patrões, porque, ao sinal de qualquer deslize, ouvia novos insultos. Era como se estivesse sendo observada e julgada 24 horas por dia.

[Madalena] Faz isso, faz isso, se eu não cuidava direito achava ruim.

Agressões verbais eram as mais comuns, mas não as únicas. Maria das Graças chegou a bater em Madalena quando a empregada ainda era uma criança.

[Madalena] Ela avançava em mim, me dava uns tapas assim… me dava uns tapas. Minha vida era só chorar.

Nos episódios anteriores, a gente viu que Margarida Bonetti, a mulher da casa abandonada, chegou a jogar sopa quente no rosto da empregada que não pagava e que, quando ela e o então marido viajavam, trancava a geladeira da casa com cadeados. Com Madalena, as cenas são semelhantes.

Os patrões criaram um ambiente de abandono, crueldade e áreas proibidas. Madalena bateu na porta da família em busca de comida, mas continuou passando fome sob o teto da família Milagres Rigueira.

[Madalena] Passava fome. Eu era magrinha.

Se a vissem pegando qualquer alimento, se irritavam e diziam que ela estava acabando com tudo.

[Madalena] Ahhh eu mexia, eles falavam que eu comia tudo, sentia falta. Não podia não.

A reação hostil dos empregadores era tão constante que Madalena parou de se arriscar. Passar fome se tornou o cotidiano dela.

Madalena nunca comeu na mesa dos patrões. O quarto dela também era sala de jantar. Durante as refeições, eles esvaziavam as panelas. Só para mostrar que a comida da empregada não deveria ser a mesma que a deles.

[Madalena] De manhã, de tarde, comia tudo. Pra não deixar nada pra mim. Comida é comida requentada.

Se deixassem algo para ela, eram sobras requentadas. A casa era repleta de cadeados e fronteiras invisíveis que Madalena enxergava com clareza. Também havia dentro da casa um teatro de demonstração de poder. Por exemplo: se faziam uma porção de pão de queijo para o café da tarde, davam para Madalena apenas um. E não era por falta de comida.

[Madalena] Agora as coisas também pra comer. Era assim… UM pão de queijo. Ela fazia um, deixava na banqueta lá e por aí ficava.

Os pães de queijo poderiam ficar na bancada da cozinha até murchar, Madalena não podia pegá-los. E sofria calada.

[Madalena] Porque eu gostava muito pão de queijo! E ela deixava só um pra mim.

Cada vez mais, Madalena ia entendendo qual lugar tinha sido destinado para ela na vida daquela família. E a cada humilhação, sentia medo do que mais poderia acontecer.

[Madalena] Medo e raiva… medo, medo deles fazerem alguma coisa comigo.

Madalena também não podia usar qualquer coisa que fosse da família. Aqueles itens que a gente costuma dizer que são da casa. Qualquer coisa mesmo.

[Madalena] Nunca usei! A mulher sentia falta. Eu tinha vontade de pegar mas ela sentia falta. Não podia pegar um papel higiênico igual ao delas no banheiro.

Nem papel higiênico, sabonete ou sabão em pó.

[Madalena] Ainda tinha que comprar, em vez de eu usar as coisas de dentro da casa, tinha que comprar pra mim papel higiênico, tinha de comprar sabão em pó, tudo separado.

[Beatriz] A senhora não podia usar NADA de dentro da casa?

[Madalena] Nada de dentro de casa. Tinha que usar tudo separado. Já pensou uma coisa dessa?

[Beatriz] Uhum.

[Madalena] Ué, tem base isso?

Então, todo mês, tinha que ir até o mercado mais próximo comprar produtos de limpeza e higiene para não usar os que já estavam na despensa. E carregar os produtos sozinha no caminho de volta.

[Madalena] Eu tinha que ir lá comprar e trazer aquele peso.

Às vezes, o peso era demais. E Madalena tentava fugir. Saía correndo e chorando pelas ruas nas poucas vezes em que deixava a casa. Queria ir embora. Mas Maria das Graças não deixava.

[Madalena] Eu descia pra baixo chorando querendo ir embora. Ela ia arrumar confusão, me buscava.

A patroa ia atrás de Madalena e a trazia de volta, entre gritos e lágrimas da empregada.

[Madalena] ‘Você está passando vergonha no meio dos outros???’ Olha de tanto dar raiva do que ela fazia dentro de casa. Aí eu começava a chorar.

Madalena foi privada de informação por quase quatro décadas. Não tinha contato com ninguém de fora da casa. Mas sabia que tinha alguma coisa errada acontecendo ali.

[Madalena] Não, achava que tinha alguma coisa acontecendo né?

Ela podia não conhecer o nome que resumia todas as violências que sofria, mas sabia que tinha algo de errado com o jeito que a obrigaram a viver.

[Luana Simões] As trabalhadoras domésticas têm uma noção de que elas estão sendo constrangidas em relação às suas possibilidades de vida, né? Porque elas vivenciam uma situação de trabalho permanente, elas não conseguem sair daquele local, elas não têm a possibilidade de definir os rumos que elas querem ter para suas vidas, né? E a vida se resume a uma vida de trabalho, né?

A voz que você escuta é de Luana Simões Pinheiro, que trabalha com gênero e raça no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea.

[Luana] A vida dela se resume a oferecer um trabalho para aquela família onde elas estão ocupadas. Numa relação que é que é que é muito além de uma relação de trabalho, né? Aquilo ali o que essas mulheres vivem é muito mais do que uma relação de trabalho, né? Porque você não tem ali de fato um vínculo trabalhista, né? Você tem um vínculo de exploração da vida, do corpo, né? Da história daquela mulher.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Você já deve ter se perguntado: como ainda existe escravidão, ou uma prima-irmã dela, em 2022?

[Luana] A gente então tem um tem uma história que remonta à escravidão né, à ideia de que essas mulheres elas estão ali pra servir permanentemente quase em alguns momentos como uma propriedade daqueles que empregam essas trabalhadoras né?

Esse é um sintoma de uma sociedade que foi estruturada pela escravidão. E que sobrevive na forma do racismo estrutural.

[Luana] O que a gente sabe do trabalho doméstico é que são mulheres negras, né? Sempre mulheres negras e de baixa renda, de famílias de baixa renda, de baixa escolaridade. Então certamente é desse universo de pessoas que a gente está falando, né?

Dados de 2019 do Ipea mostraram que de um total de seis milhões de pessoas ocupadas em trabalho doméstico, 92% eram mulheres. Em sua maioria negras, de baixa escolaridade e de famílias de baixa renda.

[Luana] O trabalho doméstico está sentado em três grandes desigualdades da nossa sociedade que eu acho que ajudam a gente a entender porque ele é tão vulnerável.

Essas três desigualdades são a racial, a de gênero e a de renda. As vítimas de trabalho doméstico análogo à escravidão são quase sempre mulheres, negras e pobres.

[Luana] E aí aquelas que estão em condições análogas de escravidão vão ser o um grupo ainda mais vulnerável desse grupo de mulheres que são as mulheres negras e de baixa renda e escolaridade, né? São essas mulheres que fazem trabalho doméstico no Brasil ainda hoje, né?

Esse tipo de trabalho também reproduz o patriarcado. Historicamente, entende-se que mulher tem um dom natural, quase mágico, de destinar a existência aos cuidados da casa e de outras pessoas.

[Luana] Remonta a história do patriarcado, né? Quer dizer, o trabalho doméstico é entendido como sendo naturalmente uma habilidade feminina, né? Então são as mulheres que exercem esse trabalho, majoritariamente.

Uma segunda dúvida que pode ter pintado é: o que é exatamente trabalho análogo à escravidão? Quais as características precisam existir em um caso de exploração do trabalho para este ser considerado um caso de escravidão contemporânea?

A partir de agora você vai ouvir um pouco de juridiquês. Mas todo jargão vai ser traduzido para uma linguagem de dia de semana.

Alline Oishi explica o que define o trabalho análogo à escravidão. Ela é procuradora do trabalho do Ministério Público do Trabalho de São Paulo e Vice-Coordenadora Regional da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas.

[Alline Oishi] A gente usa os parâmetros do código penal. O código penal tem um um tipo penal específico para caracterização do crime de redução à condição análoga à de escravo e nós usamos ali os conceitos que eles colocaram, que são jornada exaustiva, condição degradante e cerceamento de liberdade, né?

Então: jornada exaustiva, condição degradante e cerceamento de liberdade. Esses são os fatores que caracterizam um trabalho análogo à escravidão. Os três estiveram presentes por quatro décadas na vida de Madalena e por duas décadas na vida da pessoa que foi explorada pela mulher da casa abandonada.

[Alline] Na questão trabalhista a gente vê na verdade o quanto aquele trabalhador perdeu de autonomia.

Mas, vamos destrinchar o que é cerceamento de liberdade.

[Alline] Ela não tem mais autonomia pra conseguir sair daquela situação, não necessariamente que ela esteja trancada em algum lugar, né?

Na maioria dos casos, a liberdade da empregada doméstica não é bloqueada com um cadeado na porta. São maneiras mais sutis. Ou seja, por mais que a funcionária tenha permissão para sair do local de trabalho, ela não tem condições para isso. Seja por não ter dinheiro para se locomover, seja por medo da reação dos patrões. A gente viu isso acontecendo com Madalena, que não podia sair de casa nem para se relacionar com as pessoas. Aqui a Luana, pesquisadora do Ipea:

[Luana] Então ela não consegue sair daquele espaço onde ela está trabalhando, né? Ela não consegue ter um controle sobre a sua própria vida. Então ela está numa situação de trabalho análogo à escravidão quando ela não consegue controlar a sua própria vida, ela não tem possibilidade de fazer aquilo que ela tem vontade de fazer, né?

E casos de trabalho escravo doméstico podem perdurar por muito mais tempo do que a gente pensa. Em abril, a Folha revelou o caso de uma senhora de Santos, cidade no litoral paulista. Logo no título do texto, a informação mais chocante. A vítima ficou 50 anos sob os maus tratos dos patrões em um apartamento em Gonzaga, bairro na região nobre da cidade. Quando foi resgatada, em 2020, já tinha 89 anos.

Quando eu li a matéria, decidi que precisava descer a serra até a Baixada Santista e saber mais. Conversei com o procurador do MPT que está atuando no caso, Rodrigo Lestrade Pedroso. Ele não cita os nomes da vítima e dos acusados porque o processo estava correndo em segredo de Justiça.

[Rodrigo Lestrade] Acabou com a vida dessa senhora, né? Acabou com a vida dela. Cinquenta anos… O que ela sabe fazer hoje? Pra onde que ela vai? Aguardando, sentada, uma decisão da justiça agora que vai ter recurso, que vai ter isso, que vai ter aquilo…

Uma investigação de exploração análoga à escravidão é considerada uma ação civíl pública. É quando uma pessoa é processada por danos morais que tenha causado a direitos coletivos. Nesse caso, direitos trabalhistas, que são de todos. São da sociedade.

[Rodrigo] Eu peço uma condenação né?! Da família ali pela prática de dano moral coletivo. E peço também algumas outras obrigações de fazer. Na próxima vez que forem contratar uma doméstica, que assinem a carteira dela, que paguem as verbas trabalhistas, os direitos trabalhistas todos, tá? Pro futuro, né? E além dessa condenação, indenização para o passado.

Ou seja, o procurador Lestrade está processando o acusado de manter uma empregada em trabalho análogo à escravidão em nome da sociedade. A vítima também costuma entrar com processos trabalhistas individuais contra os empregadores para receber indenização.

[Rodrigo] É diferente da ação individual dela que ela pede ali o décimo terceiro, férias, aviso prévio, depósito de fundo de garantia, assinatura da carteira. Pede pra ela, pede o ressarcimento pra ela. Eu não peço nada pra ela. Peço pra coletividade.

Vários processos podem fazer parte de um caso de trabalho escravo contemporâneo, incluindo processos criminais que podem levar o acusado a cumprir pena de reclusão de até oito anos. Mas o que importa pra gente é entender o trâmite básico do Ministério Público do Trabalho e quanto tempo leva para a vítima receber algum tipo de justiça.

E pode levar anos. Geralmente são cerca de três anos, mas pode durar mais. E tende a durar mais. Porque, apesar de ser um crime contra a humanidade, o trâmite do processo não tem nenhuma particularidade que o diferencie de uma ação comum. Resumindo: é uma ação civil pública, em que cabem recursos, que entra na fila da Justiça brasileira e anda no ritmo dela.

[Rodrigo] Em tese, cabem dois recursos, né? Depois da sentença, cabem dois.

O primeiro recurso depois da sentença é no Tribunal Regional do Trabalho. Depois do julgamento deste recurso, cabe um segundo.

[Rodrigo] E depois, em tese, pode caber o recurso para Brasília, para o TST, Tribunal Superior do Trabalho.

Nesse caminho longo de recursos e julgamentos, o tempo vai passando e a vítima pode continuar sem o acolhimento de que precisa. No caso da mulher de quase noventa anos, o promotor diz ficar aflito. Aflito de que ela não vá ver a justiça ser feita.

[Rodrigo] E contando com o tempo também, daqui a pouco essa senhora morre, vai falecer, já tem 89 anos…

Uma semana depois que eu fui até Santos e conversei com o procurador do MPT, o caso apareceu em uma reportagem do Fantástico, que revelou o nome das pessoas envolvidas. A vítima é, de novo, uma mulher negra. E a pessoa que explorava o trabalho dela é uma mulher branca, de 93 anos. A empregada também sofria agressões verbais e físicas de Nilce e de Rosana Fernandes Simão, filha dela. Até que uma vizinha resolveu denunciar os abusos.

[reportagem da TV Globo sobre o caso de Santos]

Zilmara decidiu gravar e denunciar. O áudio tem muito som ambiente.

[áudio da denúncia] "Ela não limpou o leite da minha geladeira!". "Vem limpar aqui!!! Isso, vai. Some, some, some, mãe. Manda vir limpar aqui. Demônia."

O estado em que os auditores do trabalho encontraram a empregada cumpria os parâmetros do Código Penal para trabalho escravo. As agressões também seguiam o mesmo padrão que já conhecemos. Trabalho não remunerado, agressões verbais e físicas, humilhação, proibição de sair de casa para fazer o que quisesse, contato zero com familiares e pessoas que não fossem os empregadores. A funcionária vivia tão reclusa que a família dela acreditava que ela já tinha morrido.

[reportagem da TV Globo sobre o caso de Santos]

Já de imediato, deu para perceber que era uma pessoa muito maltratada. Ela não tinha carteira de trabalho. Realmente ela estava ali em troca de um prato de comida e da moradia. Era um quartinho separado dos demais cômodos do apartamento e era ali que ela repousava.

Depois do resgate, a mulher passou a morar com uma das netas, chamada Viviane, e a receber uma pensão no valor de um salário mínimo e um plano de saúde, os dois bancados pela família que a submeteu à condição de trabalho escravo.

Tanto a mulher libertada nesse caso quanto Madalena e a pessoa explorada pela mulher da casa abandonada são rostos de um crime que ainda está presente na sociedade e que se esconde dentro das casas e apartamentos dos brasileiros. Pessoas muitas vezes admiradas. Professores universitários, famílias com sobrenomes tradicionais, executivos com cargos altos em empresas.

Segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência, 46 pessoas foram resgatadas de trabalho escravo doméstico no Brasil desde 2017. Só em 2022 já foram sete casos. Se você fizer uma pesquisa rápida na internet vai encontrar dezenas de notícias sobre o assunto. Além do caso de Santos, um dos mais recentes em destaque na imprensa aconteceu no Rio de Janeiro.

Os acusados de escravizar uma funcionária na Zona Norte do Rio foram mais longe. Mantiveram uma funcionária doméstica em situação análoga à escravidão por 72 anos. Ela foi resgatada em março deste ano. É o tempo mais longo desse tipo de exploração já registrado no país, segundo o Ministério do Trabalho.

[reportagem da TV Globo sobre o caso do Rio de Janeiro]

Mãos que trabalharam a vida inteira. Uma mulher que viveu à sombra de uma única família. Não casou, não teve filhos, não tinha amigos. Perdeu contato com os próprios parentes e não recebia salário. Nem férias.

O padrão dos abusos se repete.

[reportagem da TV Globo sobre o caso do Rio de Janeiro]

Quando foi resgatada, trabalhava como cuidadora da dona da casa e dormia neste sofá, na entrada do quarto principal.

A idosa, de novo, uma mulher negra, está sob os cuidados da Prefeitura do Rio desde que foi resgatada. Sim. O crime que René e Margarida Bonetti cometeram nos Estados Unidos ainda é muito comum no Brasil. E isso tem uma explicação. O trabalho doméstico está entre os mais vulneráveis e desvalorizados que existe.

A Luana Simões explica que mesmo que uma trabalhadora doméstica não esteja em condições extremas de trabalho, não significa que ela esteja trabalhando em condições normais.

[Luana] O trabalho doméstico é a ocupação mais informal de todas as ocupações que a gente tem. Então a gente está olhando aqui especificamente pro caso das trabalhadoras em situação análoga de escravidão, mas a gente não está falando que as outras que trabalham nessa ocupação, estão trabalhando numa ocupação de boa qualidade, porque não é isso né?

O trabalho doméstico ainda é marcado pelo descumprimento das leis trabalhistas. Um estudo do Ipea de 2020 em parceria com a ONU Mulheres revelou que 70% das profissionais ocupadas não têm carteira de trabalho assinada e direitos trabalhistas assegurados.

No Brasil ainda tem gente que pensa que as empregadas domésticas devem ficar à margem da sociedade. O ministro da economia, Paulo Guedes, por exemplo, lembrou delas desse jeito quando quis defender o dólar alto.

[trecho de vídeo em que Paulo Guedes cita empregadas domésticas]

Todo mundo indo pra Disneylândia. Empregada doméstica indo pra Disneylândia. Uma festa danada. Mas pera aí?!

Depois de passar por Santos e Rio de Janeiro, agora a gente vai voltar para Minas Gerais.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Era como se Madalena tivesse perdido a natureza humana e virado uma coisa sem voz e sem sentimento. Em 2001, Maria das Graças e o filho dela Dalton Rigueira arranjaram um casamento entre Madalena e um tio de Valdirene, esposa de Dalton. E por que, de repente, quiseram que a empregada se casasse com alguém da família?

O tio de Valdirene era ex-combatente de guerra. Na época do casamento arranjado, Madalena tinha 27 anos e o futuro marido, Marino Lopes da Costa, 78. Ele estava com a saúde debilitada e a família sabia disso. Mãe e filho estavam de olho na pensão que viria depois da morte do ex-militar. Para convencer Madalena a assinar os papéis do casamento, disseram que toda a pensão ficaria com ela.

[Madalena] Pra você receber o teu dinheiro. Que eu não tinha dinheiro. Não, era tudo pra mim. Aí eu casei. Não, o homem já está doente. Na cadeira. Eu não tinha relação, não tinha, ele não conversava. Ele ficava sentadinho na cadeira no cantinho lá.

Ela se casou com um homem que mal conhecia. Na verdade, Madalena mal podia chegar perto do marido. A sobrinha dele, Valdirene, a repreendeu quando, uma vez, ela se aproximou de Marino para pegar na mão dele. E fez isso com falas racistas.

[Madalena] Ela falava que ele não gostava de preto. Por que que eu fui casar com ele, que ele não gostava de preto.

Madalena ficou viúva do casamento de papel dois anos depois. E, de fato, passou a ter direito a duas pensões que somavam uma renda mensal de mais de R$ 8 mil. Mas, da mesma forma que o casamento, o direito dela à pensão também ficou só no papel.

[Madalena] Ficava tudo pra eles. Um bocado pra eles e eles me davam só um pouquinho pra mim.

O dinheiro era administrado por Maria das Graças e Dalton. Em depoimento ao Ministério Público do Trabalho, Madalena disse que recebia um valor entre 50 e 200 reais por mês. As investigações também revelaram que, além de ajudar a manter o estilo de vida da família, a pensão foi usada para pagar a faculdade de medicina de outra filha de Maria das Graças.

Madalena viveu por 24 anos em condições análogas à de trabalho escravo na casa de Maria das Graças e Vanir Rigueira. Até que, em 2006, a patroa deu Madalena para o filho Dalton. Sim, ela deu uma pessoa, como se dá um objeto. E os maus tratos foram junto, continuaram na casa de Dalton e de Valdirene.

A vida de Madalena era obrigada a caber num quarto de empregada. Nessa nova casa, ela foi explorada por 14 anos. Um dia, ela decidiu escrever bilhetinhos e passar por baixo das portas dos vizinhos. As letras e frases eram um pouco confusas, de quem tinha passado 38 anos sem estudos. Pediam um pouco de dinheiro, de cinco a dez reais, para comprar comida, produtos básicos de higiene, sabonetes por exemplo, remédios e passagens de ônibus.

[Madalena] Pra mim ir no postinho, pedindo cinco reais pra eu tratar da saúde, pegar um ônibus. Porque eu não tinha… acabava TUDO o meu dinheiro. Não tinha dinheiro pra pagar nada. Eu comprava as coisas assim na rua e ficava devendo. Roupa… Pedindo pão. Pedindo as coisas pra comer. Não tinha nada, cinco reais, dez, quinze.

A intenção de Madalena não era denunciar o crime. O único objetivo dela era buscar ajuda para manter a sobrevivência.

[Madalena] Não, eu não imaginava que ia ter denúncia não.

[Beatriz] Não imaginava?

[Madalena] Não. Dava e falava com ela pra não falar nada.

Ela tinha medo de ser descoberta. Para evitar que isso acontecesse, escrevia e passava bilhetes por baixo das portas dos vizinhos enquanto os patrões ainda estavam dormindo.

[Madalena] Eles estavam dormindo. Eu escrevia de manhã pedindo as coisas.

Os moradores do prédio na região central de Patos de Minas se espantaram com o teor dos bilhetes. Por que a empregada doméstica de uma família de classe média alta estava pedindo cinco reais para comprar sabonete? Suspeitando do que poderia estar acontecendo com Madalena, os vizinhos denunciaram a situação ao Ministério Público do Trabalho. Da denúncia, veio o resgate. Madalena Gordiano viveu nessas condições no apartamento de Dalton e Valdirene até a última sexta-feira de novembro de 2020. Dia em que saiu de casa para comprar frutas e legumes e deu de cara com a liberdade, aos 46 anos.

Em depoimento ao MPT, Dalton se defendeu afirmando que não considerava Madalena empregada doméstica, mas sim uma pessoa da família.

[reportagem da TV Globo sobre o caso de Madalena Gordiano]

Em depoimento, Dalton Rigueira afirmou que Madalena se recusou a ocupar um quarto maior no apartamento. O professor também afirmou que foi ela que quis parar de estudar e que ele não a incentivava a continuar com os estudos porque não acreditava que ela se beneficiaria.

A mulher que submeteu uma pessoa a trabalho análogo à escravidão em Santos usou o mesmo argumento.

[reportagem da TV Globo sobre o caso de Santos]

Contradizendo a informação da patroa de que na verdade ela era uma pessoa considerada como pessoa da família.

Os acusados de escravizar uma senhora por 72 anos na Zona Norte do Rio de Janeiro também disseram que ela era da família.

[reportagem da TV Globo sobre o caso do Rio de Janeiro]

"Essa senhora, que os empregadores alegam que é da família — e não é —, ela fica absolutamente submissa. O empregador que fala por ela. Qualquer resposta que a gente solicitar dela, é o empregador que responde. Os documentos dela não estão em posse dela. O empregador que tem esses documentos".

É o mesmo argumento de Renê Bonetti no julgamento em Maryland, em 2000.

A justificativa é, no mínimo, irônica. Os patrões afirmam que a empregada é da família com a intenção de aliviar o não pagamento de salário e todos os outros benefícios trabalhistas a que qualquer empregado tem direito. Nessa lógica, sendo da família, a empregada na verdade não mantém uma relação de trabalho, mas sim de cumplicidade e de afeto. Mas, se ser da família significa que o patrão ou a patroa mantém uma relação de carinho com a empregada doméstica, como se fosse uma irmã, tia ou avó, é razoável submeter essa pessoa a condições tão degradantes?

Quem explica a falácia por trás do argumento de que a empregada doméstica é da família é Maria Cláudia Falcão, coordenadora na Organização Internacional do Trabalho.

[Maria Cláudia ] Vive-se dessa ilusão de que se faz parte para justificar talvez o não pagamento de todos os direitos trabalhistas, né, o pagamento do décimo terceiro salário, das férias, de um salário adequado, né? De uma carga horária que seja condizente, né?

[Maria Cláudia ] Então a gente sabe que às vezes eles têm jornada exaustiva, não são pagos todos os direitos e aí porque você ganha um presente no Natal ou porque você tem ali alguma coisa, alguma convivência com a família, você faz parte da família?

É a mesma lógica do quarto de empregada. É da família, mas nem tanto, como explica Luana Simões, do Ipea.

[Luana] Tem uma pesquisadora no Ipea que fala isso também com frequência. ‘Bom, se faz parte da família, na hora da herança está lá o nome, né? Nunca está, né? Quer dizer, faz parte da família até um certo ponto, né?

Mesmo explorada, a empregada doméstica pode acabar criando um vínculo emocional com a família.

[Luana] E aí essa coisa ‘ah você é da minha família’ você vai vai criando essa relação. E aí é tudo muito complexo né? Quando você está falando de um trabalho que não é um trabalho de cuidados, que não tem esse envolvimento emocional, nem sempre romper os vínculos é uma coisa simples, mas um trabalho que tem esse tipo de envolvimento, e aí as trabalhadoras se envolvem com os filhos que estão cuidando, com as crianças, né?

E essa estrutura abusiva disfarçada facilita a exploração, porque torna cada vez mais complicado o rompimento do vínculo. A própria vítima da violência se sente culpada por denunciar. Seja porque se sente devedora da família, seja por nutrir algum tipo de afeto pelas pessoas com quem dividiu o teto por décadas. A empregada de Margarida Bonetti repensou antes de confirmar para as autoridades os maus tratos que sofreu do casal Bonetti. Segundo a vizinha Vic Schneider, ela ficou com pena dos patrões. Não queria que eles fossem presos.

O laço emocional que a empregada doméstica cria com os donos da casa é um dos obstáculos à denúncia. Não é por acaso que a descoberta do trabalho análogo à escravidão em serviços domésticos ainda depende de pessoas não envolvidas diretamente no caso, como afirma a procuradora Alline Oish.

[Alline] Mas a gente atua basicamente por denúncias né? Não tem um outro meio da gente conhecer uma situação se não for essa, a menos que outra instituição tenha estado nesse lugar, tenha presenciado uma situação e nos relate.

Procuradores do trabalho dizem que o fato do crime acontecer dentro de uma propriedade privada dificulta a fiscalização. Porque as autoridades só podem entrar na residência para apurar o que aconteceu ali com um mandado judicial e a partir de uma denúncia. E, apesar das denúncias estarem aumentando, o número de casos conhecidos não chega nem perto da realidade.

[Alline] Primeiro, apartamentos talvez você veja ali se a pessoa sai, se não sai, se ela tem fim de semana, se ela não tem, se ela dorme, se não dorme, né? E casa mais difícil ainda porque tem que conhecer muito da realidade ali. É difícil você conhecer, numa cidade como São Paulo, a maioria das pessoas não conhece a vida dos seus vizinhos, né? E isso acaba gerando uma uma subnotificação mesmo.

A pesquisadora Luana diz que o argumento de inviolabilidade do ambiente privado não é suficiente para justificar a impossibilidade da fiscalização.

[Luana] Isso não pode ser a porta que se fecha pra sempre pra qualquer coisa que acontece no domicílio, está ali dentro, e é invisível aos olhos do Estado, né?

Luana dá o exemplo da Lei Maria da Penha, que protege mulheres contra a violência doméstica e familiar. A lei abriu um novo caminho que mostra que a Justiça pode, e deve, garantir a segurança de mulheres dentro do espaço domiciliar. Que nem tudo que acontece entre quatro paredes deve ficar assim.

[Luana] A lei Maria da Penha mostrou pra gente que a inviolabilidade do lar é importante, porém ela não é absoluta. Então a gente já tem uma experiência no campo de gênero, no campo das políticas pras mulheres mostrando que é possível olhar pro espaço do domicílio e pensar que a gente tem como agir ali, porque ali dentro deste espaço ocorrem violências, ocorrem explorações, ocorrem mortes. Ocorrem situações como o trabalho análogo a escravidão que a gente tá falando de uma condição ultra degradante, né?

E para essas mulheres a violência não acaba com o fim da exploração. Até hoje Madalena tem medo de sofrer perseguições dos que a escravizaram.

[Madalena] Tem contato não, mas tenho medo de eles ficarem me perseguindo, mas não persegue não. Você acha que persegue?

[Beatriz] A senhora tem medo?

[Madalena] Eu tenho.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

[Madalena] Uma porta aberta, a outra, outra porta aberta também. Lá não tem porta fechada.

É assim que Madalena enxerga a vida dela hoje. Ela mora com Taís Teófilo há cerca de um ano e meio, em Uberaba. Mas antes de ir para a casa de Taís, ela foi encaminhada para um lar de acolhimento para mulheres viciadas em álcool e outras drogas, ou em situação de rua.

[Taís] O pessoal ia levar ela pra família dela lá em São Miguel e ela se recusou no resgate. E aí ela veio e acabou parando aqui em Uberaba numa casa de acolhimento e essa casa de acolhimento era pra mulheres, né, com uso de álcool e outras drogas e moradoras de rua. E aí a Madah não se adaptou lá. Porque não tinha nada a ver com o que ela estava habituada, né?

Madalena não se adaptou à casa de acolhimento. Nesse período em que ela viveu no abrigo, foi construindo uma relação de cumplicidade com Tais.

[Taís] E eu era assistente social da casa. Aí ela foi passar o Natal comigo, Ano Novo e aí nós fomos criando um vínculo de confiança, né, primeiramente, depois de afeto.

Até que a dona da casa de acolhimento perguntou para Taís se ela poderia acolher Madalena, e ela disse que sim.

[Taís] É minha companhia lá em casa né, porque tem meu marido, tem minha filha, mas eu passo mais tempo junto com ela do que do com eles.

Taís observa Madalena se tornar uma presença inteira no mundo.

[Taís] Você pegar uma Madalena de novembro de dois mil e vinte e pegar Madalena hoje…. É outra pessoa assim. E aos poucos, em tão pouco tempo, ela já dá entrevistas, fala com quem quiser falar com ela, quer passear, quer curtir a vida, quer viajar, né?

Madalena e Taís fazem tudo juntas.

[Taís] Vamos pras festas juntas também.

Aliás, no sábado de maio em que essa conversa foi gravada, as duas iriam para um show de uma dupla sertaneja. A festa ia acontecer de noite, durante uma exposição pecuária. Um show para dezenas de milhares de pessoas. Depois de tanto tempo presa, ela quer aproveitar todos lugares que não sabia que existiam.

[Madalena] Quero ir, quero ir.

[Taís] E não levo não pra você ver…

[Madalena] Amanhã eu fico emburrada.

[Taís] Fica emburrada comigo.

[Beatriz] Não conversa?

[Taís] Nãoooo, é uma semana. De relação cortada, quando eu falo alguma coisa que não pode, sabe?

Já viajaram para Brasília e Uberlândia. As duas também viajaram juntas para Madalena conhecer o mar, como ela mesma relembra.

[Madalena] Eu senti um salgadinho na boca. (risada) E a areia no pé também. Eu afundei meu pé lá, daí afundou e meu pé afundou na areia. Aí eu falei ‘nossa ta me levando a areia’. Fiquei tontinha.

Madalena também já fez uma viagem sozinha. Foi para Patos de Minas rever os amigos que fez depois do resgate e ficou lá por um mês.

Hoje, Madalena tem um imóvel na mesma cidade em que foi explorada. Ela ganhou o apartamento como indenização em uma ação trabalhista contra Dalton e Valdirene. É o mesmo lugar em que passou os últimos 14 anos de exploração. Ela também ficou com um carro da família e recebeu um pagamento de 20 mil reais.

[Madalena] O apartamento é meu. E o carro também é meu.

Outros processos contra a família Milagres Rigueira ainda estão em andamento.

É em Uberaba que Madalena quer construir os próximos anos dela. Pretende vender o imóvel que recebeu de indenização e comprar outro na cidade do Triângulo Mineiro.

[Madalena] Eu quero ter minha casa agora. Minha casinha. Quero ter minha casa mobiliada, meu apartamentinho, morar lá e ficar quietinha.

Pela primeira vez em 38 anos, Madalena pode escolher pensar nela. A pensão pelo casamento arranjado com o ex-combatente militar voltou para as mãos dela e hoje é ela quem administra o dinheiro. Faz aulas de dança, paga convênio médico e faz terapia.

[Madalena] Faço psicólogo também. Eu estava na academia também né? Dei uma parada porque começou essa pandemia. Faço zumba na academia.

Ela voltou a estudar e se dá bem com a internet.

[Madalena] Hoje eu sei tudo.

[Beatriz] Hoje a senhora sabe?

[Madalena] Sei mexer em tudo.

[Beatriz] Legal!

[Madalena] Facebook. Internet. Eu te achei!

[Beatriz] É!!!

[Madalena] É.

[Beatriz] Sim!

Tem amigas online e offline.

[Beatriz] A senhora tem muita amiga?

[Madalena] Tenho.

[Beatriz] É?

[Madalena] Tenho. Quando cai na internet assim… tenho Instagram, tenho muitos seguidores.

São mais de 30 mil seguidores.

[Taís] Hoje ela exige e ela escolhe o que quer. Ninguém escolhe nada pra ela mais e se alguém ousar escolher, ela não deixa. Não deixa mesmo. Ela fala que ela sabe o que ela quer.

[Madalena] Olha, eu sinto que eu estou muito feliz que eu estou livre daquele povo, não quero ver aquele povo nunca mais, ver aquela cara daquele povo, me prendeu tanto…

No fim da entrevista, ela se despede com abraços e volta para casa. Horas depois, vai a um show em que pretende ficar até de manhã. É o primeiro grande show da vida dela.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Se você sabe, ou desconfia, que uma pessoa tem seu trabalho explorado. Denuncie. Dá para fazer uma denúncia anônima à Secretaria Especial da Previdência e Trabalho num site. É um formulário simples e rápido. Só precisa do endereço da ocorrência e de um relato breve do que está acontecendo. Assim, fiscais podem ir até o lugar e avaliar a situação. O site para fazer a denúncia, que pode ser anônima, é o seguinte: ipe.sit.trabalho.gov.br. Esse link para o site também está no texto de descrição desse episódio.

FIM DO EPISÓDIO

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