Descrição de chapéu mensalão

Teoria do domínio do fato não vale para corrupção, diz pesquisador

Crédito: Cesar Machado/Gazeta do Povo/Folhapress Alaor Leite, professor de direito penal
Alaor Leite, professor de direito penal

MARIO CESAR CARVALHO
DE SÃO PAULO

A teoria do domínio do fato, citada pelo juízes João Pedro Gebran Neto e Leandro Paulsen no julgamento do recurso do ex-presidente Lula no TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), não deveria ser aplicada em crimes de corrupção passiva.

A opinião é de um dos maiores especialistas nessa matéria, Alaor Leite, 31, aluno de doutorado na Universidade de Munique do desenvolvedor da teoria, o jurista alemão Claus Roxin, e professor de direito penal na Universidade Humboldt, de Berlim.

Em obra de 1963, Roxin defendeu que o chefe de uma organização criminosa comete crime quando dá ordens e comanda seus subordinados para praticarem atos ilícitos. No mensalão, a teoria foi usada de maneira incorreta, segundo Leite: o ex-ministro José Dirceu foi condenado pela posição que ocupava no governo, não porque conseguiram provar que ele mandara pagar os deputados da base aliada do PT.

No TRF-4, a menção à teoria pelo juiz Paulsen foi correta, ainda de acordo com o pesquisador: o magistrado disse que Lula não poderia ser condenado por ter sido presidente à época dos desvios na Petrobras, mas por causa de outras provas.

Folha - Dois juízes do TRF-4 citaram a teoria do domínio do fato no julgamento do ex-presidente Lula. Está certo o uso dessa teoria?
Alaor Leite - Ainda não há acórdão publicado, de modo que a resposta deve se basear apenas no que ouvi na sessão do TRF-4. No voto do juiz Paulsen, houve relevante esclarecimento teórico sobre os limites da teoria do domínio do fato, sobre o que ela não é: a teoria do domínio do fato não serve para fundamentar responsabilidade penal pela mera posição de destaque no interior de uma estrutura hierárquica. Está correto.

Mas faz sentido usar essa teoria em caso de corrupção?
Ainda não consegui verificar a pertinência da aplicação dessa teoria para o caso em julgamento. Afinal, bastaria a indicação da realização dos verbos do tipo penal da corrupção passiva: solicitar, receber ou aceitar promessa de vantagem indevida, em razão do cargo. Não estava em jogo a possível posição de poder em uma hierarquia, mas uma relação bilateral entre corruptor e corrompido.

A rigor, em delitos especiais como a corrupção passiva -que só podem ser praticados por sujeitos que detenham uma certa posição, como a de funcionário público-, há muitas dúvidas doutrinárias sobre a aplicação da teoria do domínio do fato. O maior artífice da teoria, por exemplo, o jurista alemão Claus Roxin, não a aplica para esse grupo de delitos, mas apenas em crimes comuns como homicídio ou estelionato.

Mas há que se esperar a publicação do acórdão [o texto com as decisões, ainda sem previsão]. Pode ser que os magistrados tenham esclarecido todos esses aspectos.

Essa teoria foi usada no mensalão para condenar José Dirceu. Por que há tanto apreço por ela no Brasil?
Há uma certa predileção por teorias estrangeiras, o que explica, em parte, o apreço. Havia também uma defasagem no estudo da autoria e da participação no direito penal brasileiro, de modo que o recurso ao que foi desenvolvido fora do país foi inevitável para o tratamento de formas mais complexas de criminalidade. Creio que essa defasagem já não existe mais.

O fundamental é estabelecer um rigoroso controle alfandegário: recepcionar sim, mas levando em conta o nosso direito. Não foi o caso da ação penal 470 do STF [mensalão].

Qual foi o erro do mensalão?
Naquela ocasião, a detenção de uma posição pareceu ser suficiente para determinar a autoria de um crime, em recurso equivocado à teoria do domínio do fato. No caso do TRF-4, todos ouviram o juiz Paulsen argumentar no sentido de que não se discutia responsabilidade por mera posição. Aguardemos os votos escritos para verificar.

Os advogados de defesa costumam dizer que essa teoria sempre é invocada quando há ausência de provas.
Isso de fato ocorreu no chamado mensalão e ocorreu em casos posteriores. Domínio do fato virou um renitente estribilho, vazio de conteúdo. Espero que tenhamos aprendido a lição. Há novas decisões do Supremo que indicam uma alentadora correção de rota.

De tudo resta uma lição para os juristas: teorias jurídicas, por vezes, encarceram pessoas de carne e osso, uma mensagem que deve martelar na cabeça de todos aqueles que se dizem cientistas.

Há especialistas que dizem que o uso dessa teoria pode ter extrapolado o objeto do processo do tríplex -corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Nessa visão, a teoria serviria para condenar por formação de quadrilha. Há algum sentido nessa visão?
Talvez estejam se referindo não à teoria do domínio do fato, mas a um de seus desdobramentos, a chamada teoria do domínio da organização, utilizada no julgamento da cúpula nacional-socialista na Alemanha. Não me consta que essa teoria tenha sido mencionada no TRF-4, e essa menção, a meu ver, careceria de sentido, como muitos penalistas brasileiros já denunciaram no contexto do mensalão em artigos técnicos e jornalísticos, inclusive na Folha. Afinal, o TRF-4 discutiu um caso de corrupção e lavagem de dinheiro, e não o conjunto da obra ou todos os crimes cometidos na Petrobras.

O direito penal apenas pode condenar pessoas por fatos concretos, bem delimitados no tempo e no espaço, e não pela mera detenção de poder político. A discussão deve ser técnica.

O uso equivocado de uma teoria pode comprometer a sentença de Lula?
Apenas se a determinação da autoria estiver fundada exclusivamente em tal teoria, o que só poderá ser respondido com a publicação do acórdão.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.