Patrícia Campos Mello
São Paulo

Em um ambiente em que a proliferação das "fake news" ameaça a democracia, a missão do jornalismo de qualidade é criar leitores críticos que saibam se defender da massiva ameaça moderna da intoxicação do sectarismo.

Essa foi a mensagem de Antonio  Caño, diretor do jornal espanhol "El País", em discurso na abertura do segundo dia do 2º Encontro Folha de Jornalismo, em comemoração do 97º aniversário do jornal e do lançamento do novo Manual da Redação. "Nosso objetivo é criar leitores críticos em relação a nossas próprias informações, reportagens e editoriais, para que se defendam da desinformação; são eles, os cidadãos informados, que devem combater essa praga", afirmou Caño.

Segundo o jornalista espanhol, não é exagerado calcular que, dentro de dois anos, metade das notícias circulando na internet serão falsas. Isso responde também a um anseio das pessoas, que , mesmo sabendo que as notícias podem ser falsas, continuam compartilhando, porque querem consumir "jornalismo" que confirme seus preconceitos.

"A desaparição da verdade por meio das 'fake news' equivale à desaparição do jornalismo e da democracia", afirmou Caño, apontando que as fake news causaram instabilidade na Espanha, durante o referendo pela independência da Catalunha, no Reino Unido, durante o "brexit", nos EUA, na eleição de 2016 e na França, na disputa entre Marine Le Pen e Emmanuel Macron.

Mas, segundo ele, é justamente neste ambiente desafiador que fica claro o papel imprescindível desempenhado pelo jornalismo de qualidade. "O jornalismo de qualidade é mais demandado do que nunca, vive uma era de ouro", disse. "O 'El País' nunca teve tantos leitores, tenho certeza de que a Folha também."

Isso porque essa realidade de pós-verdade "deixa os cidadãos se sentindo desprotegidos, e eles recorrem às publicações em que confiam, em busca de credibilidade. Os grandes jornais vivem hoje um perigo real, mas também têm uma enorme oportunidade."

O editor espanhol disse admitir que as publicações jornalísticas estão em franca desvantagem em relação aos gigantes tecnológicos como o Facebook e o Google. Além de absorver 90% da publicidade, hoje "Facebook sabe muito mais sobre o leitor do 'El País', quanto ganha, suas ambições e projetos, do que nós sabemos, e por isso estamos fazendo esforços para acumular dados que valorizarão nosso tráfego."

Para ele, isso reforça a necessidade das empresas jornalísticas colaborarem. "Os meios de prestígio precisam colaborar, sem renunciar à concorrência, que nos leva a dar versões diferentes da realidade aos cidadãos, mas colaborar em distribuição, investir em tecnologia, algo que não temos recursos suficientes para fazermos sozinhos."

Ele não acredita que a regulamentação governamental das grandes empresas de tecnologia ou a fiscalização do governo sobre "fake news" seja uma solução perfeita. "É arriscado outorgar a uma autoridade a responsabilidade de decidir o que é verdade e o que não é, tentando evitar um mal, acabamos caindo em outro, a censura", disse.

Para ele, construir uma série de muros regulatórios contra as grandes empresas de tecnologia é perigoso. "Na Europa, houve intensa regulamentação de Uber e Cabify, mas isso não impediu o sucesso deles; o necessário é fazer com que os táxis sejam mais limpos, cômodos e amigáveis do que o Uber. Temos que atuar com inteligência."

Ele afirmou que o Brasil, por ser um dos maiores mercados mundiais para as redes sociais, é também um dos países mais expostos ao fenômeno das "fake news". E este ano será decisivo para a América Latina, porque haverá eleições importantes no Brasil, Colômbia e México.

Caño sublinhou a importância de um jornal ter uma extensa rede de correspondentes no mundo. "Quanto menos correspondentes tivermos no local, menos credibilidade terá a informação que publicamos", disse. "Seria lógico dizer que a guerra da Síria se prolonga tanto porque não há correspondentes que a cubram de forma sistemática."

Caño criticou o uso de freelancers. "Há esses jornalistas que trabalham como se entregassem pizza de acordo com o gosto do cliente, com pepperoni para um, de outro jeito para outro, por mais honestos que sejam, esses jornalistas ganhando US$ 100 aqui US$ 100 ali" têm menos credibilidade.

O diretor do diário espanhol também questionou as iniciativas filantrópicas, cidadãs ou público-privadas de financiar jornalismo. "São todas ainda insuficientes para substituir o sistema de livre empresa que até agora garantiu a liberdade de empresa."

Segundo ele, a operação do "El País" no Brasil tem 4 anos e 18 jornalistas, sendo 17 brasileiros, e funciona sem departamento de marketing ou campanhas de publicidade, só no boca a boca. "É um trabalho que vamos manter nos próximos anos, seguindo com nossa vocação de jornalismo global."

Ele elogiou a decisão da Folha de deixar de atualizar sua página no Facebook, que repercutiu na imprensa mundial. "Respeito a decisão de uma publicação que decidiu falar alto com as empresas de tecnologia e tentar mudar o status quo", disse.

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