Descrição de chapéu

Propriedade definitiva aos quilombolas é correção histórica

Remanescentes de quilombos foram, por muito tempo, povos invisíveis ao Estado de Direito

Eloísa Machado de Almeida
São Paulo

Após quase 14 anos de tramitação da ADI 3239, o Supremo Tribunal Federal, por expressiva maioria, declarou constitucional o decreto 4.887/2003, que trata dos procedimentos da demarcação de terras quilombolas. Seus remanescentes, em plenário, assistiam à sessão.

Em geral, os ministros compartilharam três pontos principais.

O primeiro ponto em comum foi a constatação de que remanescentes de quilombos foram, por muito tempo, povos invisíveis ao Estado de Direito. Ademais das indeléveis marcas da vergonhosa escravidão, sofreram todo tipo de violência e opressão racial, expulsos de suas terras, perseguidos. O reconhecimento da sua existência e de seus direitos pela Constituição foi o primeiro passo de correção de uma injustiça histórica.

O segundo ponto da argumentação partilhado entre os ministros tratou da vinculação da propriedade coletiva com os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das comunidades quilombolas. Nesse sentido, a territorialidade é muito mais do que a simples propriedade; é o espaço onde se realizam os usos e costumes, onde se preservam e reproduzem suas práticas culturais; uma forma de reconhecer as diferenças e a pluralidade de formas de viver

Por fim, o terceiro ponto abordado pelos ministros tratou de questões técnicas relevantes para a interpretação dos direitos fundamentais.

Enfrentando o argumento de que, em vez de um decreto presidencial, uma lei deveria tratar do tema, os ministros reafirmaram que os direitos humanos e fundamentais previstos na Constituição têm aplicabilidade imediata.

Isso se daria justamente para garantir, no interior da Constituição, os direitos das minorias, a quem o Supremo Tribunal Federal também protege em sua função contramajoritária.

Outro argumento importante pontuou que as normas internacionais de proteção a direitos humanos exigem o reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas, declarando a incidência da Regra 169 da Organização Internacional do Trabalho —OIT no caso.

Gilmar Mendes e Dias Toffoli ficaram vencidos na posição de que o direito só poderia ser conferido àqueles remanescentes que ocupassem as terras na data de promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Essa tese, chamada de "marco temporal", foi o ponto central de embate entre os ministros. 

A maioria, porém, considerou a aplicação do "marco temporal" um tipo de prova impossível de ser feita, uma conivência com séculos de perseguição e expulsão que afetaram as comunidades remanescentes quilombolas. Derrotados, ambos os ministros não presenciaram o final da sessão.

O reconhecimento da propriedade definitiva aos remanescentes de quilombos é uma disposição constitucional originária, prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A ação que estava em trâmite no tribunal não havia suspendido o decreto, mas fazia pairar um certo grau de insegurança às demarcações, como um combustível para conflitos sobre a terra. 

Agora, a decisão vincula os órgãos do Judiciário, Legislativo e Executivo, que terão dificuldades em resistir à implementação —ainda que tardia— da Constituição.

ELOÍSA MACHADO DE ALMEIDA é professora e coordenadora do Supremo em Pauta FGV Direito SP

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