O foro por prerrogativa de função, conhecido popularmente como foro privilegiado, é o direito, atribuído pela Constituição ou por leis processuais, a pessoas que ocupam cargos públicos de serem submetidos a julgamento por órgãos específicos do Judiciário, diferentes daqueles que, normalmente, seriam competentes para conduzir um processo da mesma natureza.
A população enxerga o instituto como uma espécie de proteção criada por políticos, para políticos, com o provável objetivo de dificultar eventual condenação criminal.
Deve-se destacar que o foro por prerrogativa de função não é uma exclusividade constitucional brasileira, contudo em muitos países o agente público só terá foro especial quando praticar crimes cometidos em razão de sua função.
No Brasil, diferentemente, a ainda vigente interpretação da Constituição de 1988 pelo STF e também pelo STJ determina que as autoridades públicas sob sua competência serão processadas e julgadas por infrações penais comuns, independentemente de estes crimes estarem relacionados ao exercício do cargo.
Dessa forma, estão incluídos, conforme atual jurisprudência do STF, os crimes eleitorais, as contravenções penais e até os crimes dolosos contra a vida ou mesmo o tráfico de entorpecentes.
A justificativa para a extensão desse benefício, dada pelo próprio STF em julgamentos anteriores, é de que o foro privilegiado existe para defender o interesse público no bom exercício da função pública, além da presunção de que tribunais, compostos por julgadores mais experientes, teriam mais isenção e maior capacidade de resistir à pressão da influência da sociedade e do próprio acusado.
Há, ainda, um ponto negativo para os políticos detentores do foro: em alguns casos, a possibilidade de apresentar recursos contra a condenação é pequena ou até mesmo inexistente.
Por outro lado, é necessário destacar que os TJs, os TRFs, o STJ e o STF têm grandes dificuldades na condução da fase de produção de provas desses processos com foro especial, valendo-se quase sempre de juízes de primeiro grau para tomar interrogatórios e proceder à oitiva de testemunhas.
Esses órgãos de segundo grau e de cortes superiores, diferentemente dos juízes na primeira instância, não têm estrutura física, tampouco costume de conduzir um processo na seara penal.
Exemplo notório dessa questão foi o julgamento originário e dos recursos no STF envolvendo a ação penal 470, que tratou do mensalão.
Por fim, o foro privilegiado tira o tempo e a atenção do STJ e do STF de suas funções constitucionais principais —controle de constitucionalidade concentrado e competência recursal constitucional, no caso do Supremo— e corte recursal para uniformizar e garantir a coerência e estabilidade da jurisprudência na interpretação da lei federal, no caso do STJ.
Trata-se, portanto, de um privilégio sem sentido no atual regime democrático e republicano. Raymundo Faoro já nos ensinou que o Estado brasileiro teve como base de sua formação a existência e predominância de verdadeiros estamentos de caráter patrimonialista. O foro por prerrogativa de função é só mais um dos institutos que consagram essa história.
O fato, porém, é que o provável encerramento dessa questão na sessão de julgamento do dia 2 de maio pode desordenar a questão.
A decisão do STF só trata de parlamentares, e não toca nas outras pessoas que detêm o privilégio, que são muitas. No total, há por volta de 55 mil pessoas com foro privilegiado.
Além disso, a decisão do STF mudará a interpretação histórica do funcionamento dessa regra sem ter havido qualquer modificação legal ou mesmo constitucional, levando em conta somente argumentos práticos, enfatizando o assoberbamento da Corte com essas questões.
Assim, mais uma vez, o utilitarismo e o voluntarismo judicial mudarão o entendimento pacificado de nossa Constituição, sem chance de o Legislativo manifestar-se sobre o assunto, com consequências imprevisíveis e que podem ir ao contrário do desejo do STF para julgamentos mais céleres, isonômicos e sem quaisquer tipos de privilégio.
DANIEL FALCÃO, advogado, é professor da Faculdade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP)
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