'Um caso já é muito', afirma jornalista que denunciou abusos na ginástica

Repórter americana contou detalhes de investigação que revelou crimes contra atletas

São Paulo

“Um caso já é muito”, disse a jornalista Marisa Kwiatkowski, 33, em conversa na Folha nesta sexta-feira (29). A americana trabalhou na investigação que revelou 368 denúncias de abuso sexual contra ginastas nos EUA e resultou na condenação de Larry Nassar, médico da seleção olímpica.

A jornalista americana Marisa Kwiatkowski, 33, em conversa na Folha nesta sexta-feira (29)
A jornalista americana Marisa Kwiatkowski, 33, em conversa na Folha nesta sexta-feira (29) - Reinaldo Canato/Folhapress

Os crimes foram cometidos por treinadores, em vários estados, ao longo de 20 anos, e viraram um dos maiores escândalos do esporte no país.

Kwiatkowski é repórter do jornal The Indianapolis Star e trabalhou na série de reportagens com dois colegas. Ela investigava denúncias de abusos sexuais contra crianças em escolas quando recebeu uma dica: apurar relatos de ginastas assediados por treinadores.

Os repórteres levantaram os processos e descobriram que alguns dos envolvidos continuavam a atuar na federação americana de ginástica mesmo depois de condenados em processos de violência sexual.

Segundo a jornalista, muitas vítimas, ainda crianças na época dos acontecimentos, haviam contado aos pais ou a membros da equipe técnica sobre os crimes, mas foram desacreditadas. “Quando alguém diz que sofreu abuso sexual ganha um rótulo que não consegue tirar. Por muitos anos, as pessoas eram desencorajadas a denunciar.”

Para entrar em contato com as vítimas, Marisa lançou mão de intermediários —advogados, policiais e promotores que haviam trabalhado nas denúncias. “Era muito importante não abordá-las diretamente. Não dá para ligar para alguém e dizer: ‘Então, eu ouvi dizer que você foi abusada sexualmente pelo seu técnico’”, diz ela.

As mulheres eram maioria entre as vítimas, e os homens que falaram com o jornal não aceitaram ter seus nomes divulgados.

Para a repórter, é missão dos jornalistas trazer a público histórias como essas, por mais difíceis que sejam. Na investigação, a equipe precisou conhecer detalhes específicos dos episódios de violência para que os acusados não pudessem justificar toques inadequados como "mal compreendidos".

Em alguns casos, os colegas com quem trabalhou —dois homens— ficavam desconfortáveis com os detalhes sexuais das histórias. Era ela, então, que tinha que fazer as perguntas mais sensíveis.

Segundo Marisa, é um desafio entrevistar quem passou por tragédias pessoais. “É preciso manter contato com essas pessoas e ter certeza de que elas estão confortáveis com o que compartilharam”, explica.

Mas, para ela, contar as histórias dos sobreviventes é fundamental para dar ao leitor a dimensão do que acontece. “As pessoas se importam muito mais com pessoas do que com números ou com políticas públicas.”

Ao ser questionada sobre sua reação ao se deparar com o caso, Marisa afirma não ter se surpreendido. “Infelizmente, já escrevi sobre esse assunto muitas vezes. O abuso sexual não é um problema exclusivo da federação de ginástica”, diz.

O médico Larry Nassar, que foi condenado a até 175 anos de prisão, não havia sido formalmente acusado até a publicação das reportagens.

Ele foi procurado por um dos repórteres, mas interrompeu a entrevista quando foi avisado de que um processo judicial contra ele havia sido aberto naquele dia. Desde então, ele não fala com a imprensa sobre o caso. Nenhum outro acusado aceitou se manifestar.

Mais de 150 mulheres testemunhas apareceram para prestar depoimento na audiência de Nassar, o que fez com que ela se estendesse por quatro dias.

Ex-médico da equipe americana de ginástica, ele trabalhava com atletas na Universidade Estadual de Michigan, onde também foi denunciado por abuso. Após a publicação das reportagens, a reitora da universidade se demitiu, e a instituição fechou um acordo de reparação de danos no valor de US$ 500 milhões (R$ 1,9 bilhão).

Hoje, a federação americana de ginástica é legalmente obrigada a avisar a polícia sobre qualquer denúncia de abuso sexual. “Eu espero que as crianças já estejam mais protegidas no esporte”, diz Marisa.

Durante a publicação da série de reportagens, foram trazidos a público também os escândalos sexuais de Hollywood, e o movimento #MeToo ganhou atenção mundial.

Marisa usa esse caso como um exemplo de que as denúncias que expôs não são suficientes para solucionar o problema da violência sexual. “Quanto mais se escrever sobre isso, melhor. Ainda é um assunto muito delicado”, afirma.

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