Doria compra rua que havia anexado de forma irregular

Amigo dele, prefeito de Campos do Jordão (SP) incluiu viela em plano de desestatização de áreas públicas; tucano pagou R$ 173 mil

Wálter Nunes
Campos do Jordão

Após perder uma disputa judicial pela posse de uma viela localizada no entorno da sua casa em Campos do Jordão, o ex-prefeito de São Paulo João Doria (PSDB) foi beneficiado por um programa da prefeitura local que colocou à venda áreas consideradas "sem interesse público" pelo município.

Entre os lotes negociados estava a travessa desejada pelo hoje pré-candidato tucano ao governo do estado, que arrematou o terreno.

O prefeito Frederico Guidoni, responsável pelo programa, é amigo de João Doria e tucano como ele.

O projeto de lei que criou o Programa de Desafetação –ou seja, privatização de terrenos públicos– foi protocolado pela prefeitura na Câmara Municipal de Campos do Jordão em 16 de novembro de 2016, pouco mais de dois meses após a Folha revelar que, durante anos, Doria vinha desrespeitando decisões judiciais para reintegrar ao município a área pública.

Viela pública que foi comprada por João Doria para anexar à sua mansão, em Campos do Jordão
Viela pública que foi comprada por João Doria para anexar à sua mansão, em Campos do Jordão - Marlene Bergamo /Folhapress

No final da década de 1990, Doria anexou a área da viela sanitária, de 365 metros quadrados, ao terreno de sua casa, que ocupa um quarteirão no bairro de Descansópolis, na cidade serrana.

Ele cercou com muros e portão de ferro a pequena rua, que era usada pelos moradores do local.

Vielas sanitárias, muito comuns na cidade, são espaços entre terrenos deixados para que nada seja construído sobre a tubulação de sistemas de água e saneamento.

Também facilitam o escoamento de água em locais com declive acentuado. É permitido o seu uso por pedestres.

A anexação da área pública por Doria foi considerada irregular pela Justiça paulista, que, em 2009, determinou a reintegração de posse para o município. O tucano ignorou a determinação durante sete anos.

Onze dias após a publicação da reportagem da Folha, a Justiça negou, em 22 de setembro de 2016, um pedido de audiência feito por Doria e reforçou a necessidade de devolução da área.

Só então o tucano desobstruiu a via pública. Faltava uma semana para a eleição para a Prefeitura de São Paulo, vencida por ele em primeiro turno.

O projeto que permitiu que o político tucano comprasse o terreno foi aprovado pelos vereadores de Campos do Jordão por unanimidade em duas sessões, em março de 2017. O programa de venda de terras públicas incluiu, além da área desejada por Dória, outros 50 terrenos.

Quando a concorrência foi aberta, a empresa CFJ Administração Ltda., responsável pela administração dos imóveis de Doria, foi a única interessada na área.

João Doria pagou R$ 173.300 pelo terreno, R$ 3.000 acima do preço mínimo. A conta foi dividida em três parcelas, já quitadas.

Na declaração de bens à Justiça Eleitoral na disputa pela prefeitura em 2016, João Doria informou que a casa vale R$ 2 milhões.

Na semana passada, o portão que dá acesso à viela foi novamente fechado por funcionários do ex-prefeito.

Operários estão pavimentando um trecho de terra do caminho. Um segurança da casa de Doria vigia quem tenta entrar na área.

A interdição da travessa tem impacto na vida dos vizinhos do pré-candidato tucano, sobretudo os que circulam a pé ou de bicicleta naquela região montanhosa.

O caseiro Aparecido Donizete subiu empurrando sua bicicleta por uma ladeira íngreme que contorna o imóvel do político.

Ele mora há 24 anos na região e utilizava a viela sanitária como acesso antes de Doria cercá-la.

"A viela encurta quase metade do caminho", diz Donizete.

O tema foi bastante explorado na campanha de 2016.

Em um debate na TV, Doria irritou-se ao ser questionado pela então candidata Luiza Erundina (PSOL) e deu uma resposta ríspida. Depois, orientado por sua equipe, baixou o tom.

OUTRO LADO

O prefeito de Campos do Jordão, Frederico Guidoni (PSDB), diz que a baixa densidade demográfica da região da casa de Doria mostra que a travessa não é área de interesse público. Segundo ele, a população da região tem acesso a ônibus e a um caminho asfaltado.

"O Programa de Desafetação é inovador, transparente, legal e dá finalidade a áreas que não têm interesse público e que são transformadas em recursos para o município", disse Guidoni.

O advogado Nelson Wilians, que defende João Doria, diz que todo o processo que resultou na compra do terreno público foi feito "nos conformes da lei".

"O terreno foi um dos vários desafetados pelo poder público de Campos do Jordão, por meio de concorrência aprovada pela Câmara Municipal", declarou Willians.

De acordo com o advogado, a empresa CFJ Administração Ltda se consagrou "vencedora no certame realizado e efetivou o pagamento do preço atribuído ao imóvel pelo edital publicado pela Prefeitura de Campos de Jordão".

Entenda o caso

  • No final dos anos 1990 João Doria ergue muros para anexar uma área do município ao terreno de sua mansão, em Campos do Jordão. A viela era usada por pedestres
  • A Justiça considera o ato irregular e, em 2009, determina a reintegração de posse 
  • O tucano faz acordo com a prefeitura e doa um gerador de energia para o município em troca da área pública  
  • Câmara de Campos aponta ilegalidade e ato é revogado 
  • Em 2016 a Folha revela que Doria desobedeceu por sete anos a ordem judicial, mantendo a área fechada
  • Duas semanas após a reportagem, Doria acata a decisão judicial
  • A população volta a usar a viela
  • No mês seguinte Doria é eleito prefeito de São Paulo
  • Dois meses após Doria ter devolvido a viela, o prefeito Frederico Guidoni, amigo dele, envia  à Câmara projeto de lei que autoriza a venda de terrenos públicos, entre eles o desejado pelo tucano
  • Em março de 2017, os vereadores aprovam a lei
  • Em fevereiro de 2018 Doria é o único participante da concorrência pela viela 
  • A área é vendida por R$ 173 mil, parcelados em três vezes. 
  • Doria fecha a viela ao público
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