Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Otavio Frias Filho: Rememórias de Emília

Texto publicado originalmente em 28 de junho de 1998

O texto 'Rememórias de Emília' foi publicado originalmente em 28 de junho de 1998 no antigo caderno +Mais!

"Estou condenado a ser o Andersen desta terra". Monteiro Lobato, 1943

A imagem de Monteiro Lobato está encoberta por um tipo de fama que mais atrapalha do que ajuda, seja na iluminação dos méritos do autor, seja na leitura atual de sua obra, cujo quadro de referências já vai se tornando longínquo demais para nós. Lobato foi antes de mais nada um agitador de idéias, um polemista agressivo e irreverente que dedicou a vida à missão de denunciar as mazelas do atraso nacional. Pouco dessa efervescência de espírito restou sob a aura convencional, verde-e-amarela, que lhe imputaram à medida que ele passou a ocupar, nos anos 50, posição central no sistema escolar brasileiro.

Foi a partir dos anos 70 que Lobato foi deslocado por uma geração de educadores que submeteu sua obra a uma revisão de cunho "progressista". Influenciados pelo "revival" de Oswald de Andrade e da vertente modernista mais radical, então em curso, esses professores passaram a incriminar Lobato por seu conservadorismo em matéria estética, fixado desde a crítica feroz que ele publicou em 1917 contra a pintora Anita Malfatti. Realçaram-se, ao mesmo tempo, os traços de racismo encontrados nos livros do escritor e que, se o desabonavam junto ao público adulto, tornavam-no proibitivo, segundo aqueles educadores, para as crianças. O amoralismo de Emília, sua maior personagem, voltou a incomodar, só que desta vez não pela insolência crítica da boneca, mas por seu alegado reacionarismo.

Em vez de desfazer a anterior, a nova imagem se combinou àquela para inverter seu sinal: Lobato passou a ser tudo o que ele mais abominara em vida e jamais supôs que a posteridade poderia associar a seu nome, a saber, um autor oficialesco, de panteão, conformista tanto do ponto de vista social quanto ideológico e literário. Como sintoma, talvez, desse ambiente refratário, uma série de brincadeiras malévolas surgiu em torno de sua literatura para crianças, e Lobato —com seu "pó de pirlimpimpim", seus "narizinhos" e "rabicós"— chegou a ser tomado por autor não apenas secundário e ultrapassado, mas francamente ridículo.

Os personagens Emília e Visconde de Sabugosa, de Monteiro Lobato em ilustração de J. U. Campos
Os personagens Emília e Visconde de Sabugosa, de Monteiro Lobato em ilustração de J. U. Campos - Reprodução

Sem prejuízo dos recursos de compreensão mobilizados nessas duas tradições críticas da obra de Lobato, o objetivo aqui será deixá-las em suspenso, atravessar em meio a elas, por assim dizer, na tentativa de voltar por um momento ao texto original de seus livros para crianças. Se existe alguma utilidade em efemérides como a deste ano, ela consiste em permitir esse retorno periódico à fonte, onde cada época reencontra —refaz, na verdade— autor e obra.

"Furacão na Botocúndia" (1), recém-lançado perfil biográfico e intelectual de Lobato, parece imbuído dessa abordagem e bem-sucedido ao executá-la. O livro estabelece uma série de correções a respeito da posição do autor no contexto do modernismo dos anos 20 e extrai, da figura de estátua de bronze, uma fisionomia outra vez de carne e osso. A biografia clássica de Lobato, monumental à sua maneira, é de 1955, escrita pelo amigo e apologista Edgard Cavalheiro (2); pelo que consta, "Furacão na Botocúndia" é o primeiro trabalho com o mesmo escopo que se publica desde então.

Um dos aspectos que mais se destaca, nas narrativas biográficas, é que a paixão de Lobato pelo empreendimento produtivo, pelo trabalho voltado à multiplicação da técnica e da riqueza, pelo capitalismo, em suma, na sua feição mais intrépida, só encontra paralelo na completa inaptidão do autor para qualquer atividade prática. É como se ele fosse escritor em excesso para que pudesse ser homem de negócios, e vice-versa. Na vida prática, material, Lobato fracassou sucessivamente como fazendeiro, como editor de livros, como explorador de petróleo. Têm razão os biógrafos que alegam ter ele deixado, com suas campanhas fulgurantes, sementes que frutificaram, de uma forma ou de outra, mais tarde, quase nunca como ele gostaria (Lobato era contrário, por exemplo, ao monopólio estatal, preferindo que o governo estimulasse o capital privado a explorar ferro e petróleo). Podem ter razão, ainda, quando invocam motivos externos, de força maior, para os fracassos empresariais de Lobato.

Como homem de negócios, no entanto, o escritor parecia preencher um vazio de tino comercial autêntico por meio de uma representação imaginária dessa mesma habilidade, como se fizesse literatura prática, ao vivo. Em sua copiosa correspondência com o eterno amigo Godofredo Rangel, o Lobato-empresário aparece invariavelmente frenético, ativo, sagaz, diligente, audacioso -ao menos em suas próprias cartas. Com frequência ele deposita suas certezas em algum achado sensacional, apresentado como solução para todos os males, como o misterioso aparelho Romero para a detecção de lençóis petrolíferos. Seus esquemas são sempre mirabolantes, as expectativas de retorno dos investimentos sempre formidáveis -até que sobrevém uma conjunção desfavorável e imprevista...

Publicista brilhante, no âmbito da literatura adulta, porém, os empreendimentos de Lobato se esboroaram como se fossem reflexos de suas aventuras no mundo dos negócios. A literatura requer, talvez, um afastamento em face da dimensão prático-normativa da vida e uma capacidade de criar todo um tecido de intermediações, cerne de sua autonomia, que Lobato, tomado pelo sentido da urgência mais imediata, não podia alcançar. Sua ficção para adultos é aplicada, mas protocolar; seus contos rara vez transcendem o "causo" interiorano, a ansiedade por suscitar efeitos de terror ou humorismo aflorando a todo momento. Pode-se falar, como acerca de tudo o que Lobato escreveu, numa literatura de intenções.

O impasse contido nesse diagrama, que enclausurava Lobato numa zona morta a meio caminho entre vida literária e vida prática, forçando-o a uma atividade tão incessante quanto aparentemente estéril, encontrou seu ponto de fuga na literatura para crianças. Já se observou à saciedade que essa literatura serviu simultaneamente, a Lobato, como desaguadouro de ressentimentos e suave vingança, implantada na mentalidade das gerações futuras, sobre seus adversários e detratores. O que não foi suficientemente ressaltado é que a literatura para crianças, ao contrário do que parece, está mais próxima da vida prática -dados o seu conteúdo inevitavelmente formativo e suas finalidades não-literárias- do que a literatura para adultos; que ela também se encontra suspensa num ponto intermediário entre ação e representação, entre atitude moral e obra de arte.

Vamos, então, ao que mais interessa no caso, que é o Sítio do Picapau Amarelo. Nas primeiras histórias de Narizinho, na década de 20, o autor ainda experimenta o gênero: as personagens são rígidas, o enunciado é formulístico e a fabulação é quase toda baseada numa glosa bisonha dos clássicos da literatura mundial habitualmente servidos às crianças, de Esopo e La Fontaine a Branca de Neve e Peter Pan. Foi somente na década seguinte, quando o escritor optou por dedicar-se exclusivamente aos livros para crianças, que a estrutura do Sítio se consolidou tal como a conhecemos. A trama perde a frouxidão anterior, torna-se mais magnética e passa a se organizar em redor dos personagens brasileiros, que agora impõem seu ritmo aos empréstimos estrangeiros ou clássicos. Do ponto de vista formal, os caracteres ganham enorme nitidez e colorido, o texto adquire a segurança coloquial que seduziu pelo menos três gerações.

Quais os fundamentos da organização que possibilitou ao Sítio funcionar como um mundo prático-literário à parte, com suas regras e acentos cada vez mais reconhecíveis? Como fez Lobato para acomodar tanta pedagogia, na mais alta acepção, sob embalagem tão distraidamente ficcional? São quatro, a meu ver, esses fundamentos. Desde logo, como é comum acontecer no gênero, Lobato eliminou qualquer relação de parentesco direto, seja no corte vertical ou horizontal. Essa providência decorre da percepção de que esse tipo de parentesco gera obrigações, ao contrário da relação indireta com vós, tios e primos, que gera direitos. Em idioma psicanalítico, o Sítio é regido pelo princípio do prazer.

Ao mesmo tempo, nos grandes "romances infantis" da última fase, entre 1936 e 1942, Lobato armou uma estrutura que se poderia chamar de polifônica, em referência à análise de Bakhtin sobre Dostoiévski. Isto é, a posição "pedagógica" do autor se dissolve e se disfarça em diferentes vozes, num sistema em que cada uma corrige, modera e acrescenta algo à outra. Dona Benta, centro de gravidade do Sítio, representa, como é sabido, a cultura humanística ocidental e seus valores de tolerância, liberdade e equilíbrio. Em oposição à matriarca está Tia Nastácia, que encarna não apenas o folclore popular de origem africana e nativa, mas toda uma esfera de sensualidade misteriosa, cujo alcance se esclarece melhor se tomarmos suas realizações culinárias como metáforas sexuais, o que se ajusta ao estereótipo da mucama analisado, no mesmo passo, por Gilberto Freyre.

O Visconde e Emília mantêm relação de antagonismo semelhante, na qual o primeiro, associado sempre à imagem do bolor, traduz a ciência desprovida de espírito, e a segunda —caso invulgar de personagem que rompeu todas as fronteiras que a circunscreviam—, o espírito desprovido de freios. Todos essas personagens são retificadas, por sua vez, pelo casal de primos, Pedrinho e Narizinho. Os dois são o objeto da educação literária de Lobato ao mesmo tempo em que a submetem à prova da realidade, da qual estão mais próximos do que a Emília e o Visconde —oriundos, afinal, do reino inanimado— e do que Dona Benta e Nastácia, duas "velhas corocas", na expressão de Emília.

Por esquemática que seja, essa montagem de vozes funcionou com grande harmonia e fluência, além de propiciar um grau de complexidade incomum no gênero e cancelar, simplesmente, qualquer laivo professoral, monocórdio, que pudesse repontar nos livros de Lobato. Com base nela, o escritor lançou-se com voracidade à absorção, que por suas características só podemos qualificar de "antropofágica", dos mitos disponíveis no universo mental das crianças. O episódio mais exemplar, na afirmação nacionalista de sua própria literatura para crianças sobre as demais, do exterior e do passado, é talvez o combate em que Pedrinho e Peter Pan derrotam o Capitão Gancho, nas "Memórias de Emília". Em todos os livros, porém, essa atitude de simbolicamente destruir e incorporar a influência que vem de fora ou de longe está presente.

Houve vários modernismos, enfeixados sob a mesma denominação geral e digladiando-se em escolas e manifestos. Houve o modernismo oswaldiano, condensado na teoria antropofágica, mas houve um modernismo folclorizante, um modernismo social e nacionalista e um modernismo por assim dizer coloquial, que visava a depor -e conseguiu- o beletrismo da literatura praticada até então. Essas tendências evidentemente se mesclavam na prática e Lobato compartilhou de todas elas.
Seu propalado antimodernismo se limitava, na realidade, a hostilizar tão-somente um dos aspectos, ainda que importante, do movimento, qual seja, a experimentação formal.

Lobato já tinha 40 anos em 1922 e manteve, até o final da vida, firme oposição a qualquer estilo que não estabelecesse uma conexão transparente entre forma e sentido. Por quê? Não existe, até onde vai meu conhecimento, passagem escrita por Lobato que autorize a interpretação apresentada a seguir, mas ela se cristalizou de modo irrecusável para mim ao longo da leitura de "Furacão na Botocúndia" e da releitura dos principais livros para crianças do autor.

Na concepção de Lobato, o Brasil era vítima de uma indolência atávica. Acompanhando os estudos sobre a formação nacional, que ganhavam grande impulso na época e estão na base da consciência sobre o Brasil moderno, Lobato transitou de um enfoque naturalista dessa indolência, atribuída a fatores raciais e climáticos, ao enfoque sociológico que passou a predominar nos anos 30, deslocando sua causação para fatores ligados à organização material da sociedade. Nosso autor voltou-se sucessivamente, assim, para o combate das queimadas, depois das endemias do sertão (impaludismo, amarelão, mal de Chagas etc.).

O infame Jeca Tatu foi sendo, passo a passo, historicizado, sua situação atrelada à forma de organização da sociedade em lugar de a uma preguiça supostamente inata ou mórbida. Já nos anos 30, Lobato —sempre à busca de soluções espetaculares— resolve que ferro e petróleo, ícones da energia norte-americana, seriam o antídoto infalível contra nossa indolência, não agora natural, mas histórica.

A idéia, em voga na época, era que o Brasil já perdera tempo demais, fazendo-se urgente adotar providências cirúrgicas, verdadeiros atalhos em direção ao futuro sempre postergado. Para a consecução dessa tarefa, seria necessário mobilizar todas as energias nacionais, inclusive as literárias. Ora, o experimentalismo pelo experimentalismo, ao turvar as relações de sentido, atuava como obstáculo ao progresso; não passava de mais uma importação postiça, que poderia ter sua razão de ser em sociedades já formadas, como as da Europa, não num país onde os nexos de sentido ainda estavam por ser estabelecidos.

O tratamento "caótico" que a arte abstrata imprime a seus materiais quem sabe revitalizasse culturas de tradição secular e fossilizada; no caso brasileiro, entretanto, o efeito seria desorganizar o pouco que havia sido acumulado de maneira orgânica, autêntica e não-artificial. Comentamos três das âncoras literárias do Sítio, mas dissemos que elas seriam quatro: falta Emília, a grande criação ficcional de Lobato, apta a figurar -pelo que irradia de vivaz, de original, de surpreendente e engraçado- na galeria das personagens femininas marcantes da nossa literatura.

Na juventude, Lobato foi leitor de Nietzsche —"a maior bebedeira de minha vida", escreveu ele. Emília é apontada, com razão, como fruto remoto dessa leitura, bem como de Schopenhauer e Spencer, autores também prediletos de Lobato. A "filosofia" de Emília é com efeito uma diluição pitoresca do pensamento desses escritores. O mundo é um "come-come danado", um embate cego e sem trégua de forças que visam a predominar sobre a morte, sobre as adversidades da natureza e umas sobre as outras. A lei da vida é a lei do mais forte, ou do mais inteligente, capaz de embair o mais forte.

Tantas vezes acusada, desde logo por seus próprios companheiros de aventuras, de ser amoral, egoísta e autoritária, Emília não se dá ao trabalho de contestar essas denúncias, mas situa a verdadeira moral num plano diferente, para além das normas e convenções, dos belos propósitos e de todo sentimentalismo. A verdade nua e crua é a base da sua moralidade, o sentido de estar no mundo é agir em prol dos próprios interesses e o melhor que pode ocorrer é que os fracos aprendam a ser como os fortes. Daí o conflito tão constante, que às vezes assume tons ásperos, entre ela e Dona Benta, aferrada a princípios invariáveis que repelem o relativismo moral da boneca. Para Emília, dependendo do caso concreto, os fins justificam, sim, os meios.

Sem embargo de sua invejável vitalidade prática, Emília é um ser eminentemente linguístico; a personagem mesma se constitui quando, por efeito das pílulas do Dr. Caramujo, desata-se "a célebre torneirinha de asneiras". E o procedimento básico de Emília, seu modo de subversão por excelência —ainda um eco de leituras nietzscheanas?— é desmascarar as palavras. Ela explora o trocadilho, o duplo sentido, o falso cognato até os extremos do "nonsense", transmitindo ao pequeno leitor uma noção ao mesmo tempo lúdica, instrumental e prática da linguagem. Dito de outra forma, Emília desmonta a correspondência entre palavras e coisas, mostrando que a língua se presta a diferentes usos que dependem de contexto e posição. Predominante, por razões óbvias, em "Emília no País da Gramática", esse comportamento da boneca é uma constante nos demais livros. Note-se que idêntico procedimento é adotado em relação às idéias, que Emília manipula como às palavras.

Mais do que em qualquer outra personagem, na Emília estão plasmados o senso de pressa utilitária de Lobato e a tática do "atalho", do salto que passa por cima das normas e instituições para ir diretamente ao que importa. Não seria impossível associá-la, feitas todas as ressalvas de praxe, às tentações do desenvolvimentismo autoritário que se tornaram frequentes entre os anos 30 e o regime militar instaurado em 64. Por essa ou por outra razão, Lobato, que foi molestado e passou três meses na cadeia durante o Estado Novo, escreveu dois livros aparentemente destinados a corrigir Emília, "A Chave do Tamanho" -talvez o melhor de todos- e "A Reforma da Natureza".

O primeiro é um libelo pacifista em que uma "reinação" de Emília acaba com a Segunda Guerra Mundial ao preço de quase destruir a civilização humana, provocando de permeio centenas de milhares de mortes. No segundo, a personagem empreende sua prometida reforma do mundo natural, o que acarreta consequências de tal modo desastrosas que a própria boneca admite, uma vez na vida, ter errado. Como o sistema pedagógico de Lobato tende ao equilíbrio entre as diversas tensões parciais, é funcional que Emília se depare enfim com parâmetros.

Emília é também o principal veículo dos insultos dirigidos contra Nastácia e que valeram ao autor, juntamente com o romance adulto "O Presidente Negro", a reputação de racista. Para a sensibilidade contemporânea, essa reputação é merecida. Ela não deveria justificar, porém, o veto dissimulado que se abateu sobre a literatura para crianças de Lobato, a menos que estejamos dispostos a colocar no mesmo índex a esmagadora maioria dos autores que escreveram antes dos anos 60-70 entre nós.
Lobato poderia argumentar, em seu favor, que a inferioridade de Nastácia é quase sempre remetida à falta de estudo, não à condição étnica, de resto tratada com a tradicional condescendência do paternalismo brasileiro. No final de "A Chave do Tamanho", porém, quando os líderes do planeta deliberam eleger um árbitro para concertar a paz mundial, sua escolha recai sobre Dona Benta e Tia Nastácia, que tão bem sabiam governar o Sítio juntas -não apenas sobre a primeira, como seria de esperar. E não custa ressaltar que os dois tipos fabulosos do Sítio, a Emília e o Visconde, símbolos, respectivamente, da inteligência livre e da aplicada, são produto do trabalho de Nastácia, que os faz e refaz com as mãos.

Há um outro ângulo, no ensejo do cinquentenário da morte do escritor, que merece menção. É que a figura de Monteiro Lobato está fortemente ligada, às vezes por conta de inexatidão histórica, como assinalamos quanto ao monopólio estatal, a um modelo de desenvolvimento que a década de 90 viu exaurir-se. Lobato foi um dos protagonistas da constituição ideológica desse modelo, sobretudo em sua origem, no período entre as guerras mundiais, que coincide com o apogeu de sua militância panfletária.

Em largos traços, esse modelo corresponde à doutrina e à prática do tenentismo, o movimento que impulsionou a conversão do Brasil arcaico em moderno. O pressuposto essencial às diversas correntes tenentistas era a idéia de que o Estado deveria substituir, ainda que temporariamente, o déficit de organização e de iniciativa econômica da sociedade. Muito cedo o movimento dividiu-se, porém, em dois campos opostos, submetidos ao confronto ideológico internacional entre direita e esquerda, que seguiram combatendo-se na esfera doméstica até o desenlace de 64.

Temperamento por demais indócil para sujeitar-se a disciplinas partidárias, espírito prático que não ligava grande importância à escolástica das ideologias, Lobato não se incorporou a nenhuma delas, mantendo-se ecleticamente fiel à alquimia de seus achados obsessivos, do petróleo ao biotônico Fontoura. No confronto entre direita e esquerda, entre nazismo e comunismo -até mesmo entre nativismo e europeísmo no âmbito do debate interno-, a trajetória de Lobato descrevia uma tangente cujo ponto de fuga era o exemplo da civilização norte-americana, que ele estudou como um Tocqueville caipira ao desempenhar as funções de adido comercial em Nova York entre 1927 e 1931. Em meio aos santos de seu altar (ele era ateu ou agnóstico, aliás), a mesma posição que Nietzsche ocupava no plano das realizações mentais estava reservada a Henry Ford no plano da vida material. O prestígio universal de que a cultura americana desfruta hoje em dia é outra porta de atualização da obra de Lobato.

Incrédulos em face da persistência da miséria social no Brasil, que parece ter recuado tão timidamente desde a época de Lobato, e ressurgido ao mesmo tempo sob configurações perversamente "modernas", somos tentados a considerar a missão que o tenentismo se atribuiu como uma coleção de sonhos frustrados e de erros -quando não de crimes- históricos. Não é bem assim. Redondamente fracassado, sem dúvida, quanto às promessas de resgate social e humano da maioria da população, o movimento cumpriu os objetivos de industrializar e urbanizar o país, numa experiência que, do ponto de vista do crescimento material, é um dos êxitos do século.

Liquidadas as contas, o que sobra no saldo da literatura para crianças de Lobato? Do ponto de vista da linguagem, ele contribuiu como poucos para erradicar o preciosismo contra o qual se debatem até hoje nossos vizinhos latino-americanos, para não mencionar a matriz portuguesa. Do ponto de vista do imaginário, ninguém pode negar-lhe a glória de haver criado um mundo paralelo de referências e citações populares, hoje em desuso, mas análogo ao de Lewis Carroll na cultura de língua inglesa, que extravasa o circuito literário para ressoar nas escolas, nas casas, na intimidade e no linguajar diário.

Teria sido o primeiro autor brasileiro a tratar as crianças como seres pensantes, capazes de ponderar sobre assuntos "sérios" e juízos contraditórios a fim de formar convicção própria, se não houvesse sido, antes, simplesmente o primeiro escritor que se dedicou a elas. Bastariam essas razões para que lhe fosse confirmado o epíteto de clássico, num país onde eles não são frequentes a ponto de se dispensarem com um "piparote" -como ele próprio diria.

Notas
1. "Monteiro Lobato - Furacão na Botocúndia", de Carmen Lucia de Azevedo, Marcia Camargos, Vladimir Sacchetta, São Paulo, Editora Senac, 1997;
2. "Monteiro Lobato - Vida e Obra", de Edgard Cavalheiro, São Paulo, 2 vol., Companhia Editora Nacional, 1955.

Otavio Frias Filho
Otavio Frias Filho

Diretor de Redação

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