2002: Lula vira paz e amor, conquista o mercado e finalmente chega lá

Petista doma um partido indócil, suaviza sua imagem e chega à Presidência na quarta tentativa, com aliados que protagonizariam escândalos

Lula entre seu assessor José Graziano (à esq.) e seu marqueteiro, Duda Mendonça (à dir.), durante o primeiro debate dos candidatos à Presidência, promovido pela TV Bandeirantes
Lula entre seu assessor José Graziano (à esq.) e seu marqueteiro, Duda Mendonça (à dir.), durante o primeiro debate dos candidatos à Presidência, promovido pela TV Bandeirantes - Jorge Araújo - 4.ago.2002/Folhapress
Fábio Zanini
São Paulo

Este texto faz parte da série "Minha Eleição", que toda semana traz relatos de repórteres sobre a cobertura de eleições presidenciais brasileiras do passado.

 

 

Antonio Palocci atendeu o celular e logo foi se desculpando comigo. "Sei que você andou me procurando nos últimos dias... Podemos falar agora, deixa só eu abaixar o som, estava escutando um Roy Orbison aqui". 

Faltavam poucos dias para o primeiro turno da eleição presidencial de 2002, e o PT se sentia leve. 
Palocci, o ex-prefeito de Ribeirão Preto guindado à coordenação do programa de governo de Lula, era a personificação desse partido confiante e confiável. 

Calmo e habilidoso, tinha o respeito dos mercados e do empresariado, naquele momento alvos prioritários de um partido que buscava aceitação de antigos adversários para vencer e governar.

Em 2002, quem dava as cartas na quarta campanha de Lula eram figuras que anos depois iriam cair em desgraça uma a uma. 

Além do próprio Palocci, hoje um graduado delator de Lula, esse grupo incluía José Dirceu, José Genoino, João Paulo Cunha, Silvio Pereira e Delúbio Soares. Todas figuras com quem eu conversava diariamente. "Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder", cantou Cazuza. "Minhas fontes estão na cadeia", eu poderia complementar.

Mas em 2002 o PT exalava serenidade. A senha foi dada pelo próprio Lula numa visita a Rio Branco (AC), que eu acompanhei. "Lulinha agora é paz e amor", disse numa frase que eu, desatento, não pesquei. Foi um furo doído.

Lula vinha dizendo havia meses que já tinha perdido três eleições presidenciais e que não podia perder pela quarta vez. 

Além da sacada de colocar Palocci como petista de estimação dos mercados, dobrou a resistência interna no partido e bancou o ex-malufista Duda Mendonça como marqueteiro da campanha, com a missão de traduzir em imagens o PT light. 

No comando do partido, com mão de ferro, estava o então presidente da agremiação, José Dirceu.
Dirceu e Palocci eram a perfeita dupla "policial mau e policial bom": o ex-líder estudantil treinado em Cuba com o interiorano bonachão amante do rock'n'roll. 

Nos bastidores a dupla trocava bicadas, mas em público mantinha uma fachada de harmonia. Com exceção de um episódio que presenciei num frio sábado de junho, quando a campanha se reuniu num hotel no Anhembi para lançar seu programa de governo —evento feito para Palocci brilhar, portanto. 

Horas antes, chegara a notícia da morte do publicitário Carlito Maia, criador do slogan "oPTei" e figura querida do partido. 

No centro da mesa, Palocci abriu os trabalhos anunciando a morte e pedindo um minuto de silêncio. Mal terminou de completar a frase e foi atalhado por Dirceu impaciente, a seu lado: "Minuto de silêncio não, palmas!".

Seguiu-se um longo aplauso da plateia à memória de Carlito. E a constatação evidente: Palocci era a face desse novo PT, mas Dirceu ainda davas as cartas.

Desfazer a resistência do mercado, ainda ressabiado com o Lula das greves não era suficiente, no entanto. Era preciso ampliar a aliança para fora das fronteiras tradicionais dos partidos de esquerda. Para isso, Lula amarrou na vaga de vice o senador José Alencar, escolha que tinha mais de uma utilidade. 

Era um industrial de discurso nacionalista que simbolizava a união entre capital e trabalho. Vinha de Minas Gerais, estado estratégico em qualquer disputa. E era do PL (atual PR), o que sinalizava uma inflexão ao centro. 

O fato de ser uma legenda notoriamente fisiológica foi relevado no momento, mas isso cobraria um preço alto do PT futuramente.

Lula faz comício em Fortaleza durante campanha pelas eleições de 2002
Lula faz comício em Fortaleza durante campanha pelas eleições de 2002 - Joao Wainer - 23.out.2002/Folhapress

Formar a aliança foi um ato de engenharia política não sem muita resistência interna e drama nas horas finais.

Em determinado momento, a coligação parecia fadada ao fracasso, e a Folha sacramentou em reportagem coassinada por mim. "PT e PL sepultam coligação Lula-Alencar".

No dia seguinte, a reviravolta sacramentava uma das barrigas (notícia errada) mais vergonhosas de minha carreira: "PL ressuscita aliança com PT e anuncia Alencar como vice". 

À medida que a candidatura petista crescia e que seu oponente, José Serra (PSDB), sofria os efeitos da baixa popularidade do então presidente FHC, Lula se soltava.

As viagens pelo Brasil eram o momento para chegar perto do candidato e furar a blindagem da campanha. 

Numa época em que ainda havia showmícios, praticamente decorei o setlist de Zezé Di Camargo e Luciano, dupla oficial da campanha. 

De cima dos palanques, era possível apreciar os inegáveis dons de oratória do candidato e seus acessos de raiva. Em Aracaju (SE), vi um Lula contrariado como poucas vezes —horas antes, a atriz Regina Duarte tinha entrado no programa de Serra dizendo que tinha medo do PT.

No dia do segundo turno, com os holofotes do planeta sobre o virtual presidente de esquerda, o comando do PT fez uma vã tentativa de se refugiar da imprensa.

A campanha alugou um andar no Hotel Meliá, na zona sul de São Paulo, e de lá, no começo da tarde seguiria para um local não divulgado, para acompanhar os resultados.

Lula e aliados planejavam despistar a imprensa de helicóptero. Tão logo a aeronave decolou, no entanto, foi seguida por outros dois helicópteros que sobrevoavam a região, da Globo e da Record. 

A perseguição aérea terminou em outro hotel, dessa vez o Renaissance, na região da avenida Paulista. "Foi uma Operação Tabajara", reconheceu Gilberto Carvalho, que viria a ser chefe de gabinete de Lula no Planalto.

Fechadas as urnas e confirmada a vitória petista, o novo presidente fez seu primeiro discurso num salão daquele mesmo hotel, às 22h30. 

Lá proferiu uma frase que entraria para a história: "A esperança venceu o medo". Mas no texto que enviei, deixei a frase em segundo plano —mais um deslizezinho para minha coleção numa campanha em que aprendi muito.

Lula em roda de samba na casa de Zeca Pagodinho em Xerém, na Baixada Fluminense (RJ)
Lula em roda de samba na casa de Zeca Pagodinho em Xerém, na Baixada Fluminense (RJ) - Ana Carolina Fernandes - 2002/Folhapres

Lula venceu, fez uma transição civilizada com FHC e começou a formar seu governo. Figuras obscuras da burocracia partidária começaram a ganhar estranhos poderes.

Lembro de uma conversa com Genoino meses depois, a que se juntou em determinado momento Delúbio, então tesoureiro do partido. Fumava um enorme charuto cubano —e não eram 9h da manhã.

Ainda mais sintomático foi um encontro casual que tive, ainda entre a eleição e a posse de Lula, com Silvio Pereira, secretário-geral do PT, no aeroporto de Brasília —eu a caminho de São Paulo, ele fazendo conexão para São Luís. 

Tomamos um rápido café na área de embarque e perguntei o que ele ia fazer no Maranhão. Conversar sobre ocupação de cargos, respondeu. "Está uma briga lá", disse.

Lembro de ter estranhado: o que um dirigente partidário tem a ver com negociação de cargos no governo? 
Menos de dois anos depois, ele seria uma das estrelas do mensalão, acusado de receber uma Land Rover de um empresário como propina.

A eleição de 2002

Datas
6 e 27.out (1° e 2° turnos)

Principais candidatos
Lula (PT) 46,4%
José Serra (PSDB) 23,2%
Anthony Garotinho (PSB) 17,9%
Ciro Gomes (PPS) 12%

Segundo turno
Lula: 61,3%; Serra 38,8%

Slogan do vencedor
"Quero um Brasil decente"

População à época
179 milhões

Crescimento do PIB
1,5%

Inflação do ano
12,5%

O que tocava no rádio
"Festa" (Ivete Sangalo)
"Ragatanga" (Rouge)
"Baba" (Kelly Key)

O que o Brasil via na TV
Big Brother 1 (Globo)
"O Clone" (Globo)
"Marisol" (SBT)"
The Osbournes" (MTV)

Do que se falava
Brasil pentacampeão na Copa de Japão/Coreia
"Cidade de Deus" estreia no cinema
Morte do médium Chico Xavier
Estreiam as notas e moedas de euro
Tim Lopes, jornalista da TV Globo, morto por traficantes

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