Agressividade contra repórteres tira prazer do ofício, diz Tonico Ferreira

Ex-Globo afirma que clima político e hostilidade contra mídia pesaram na decisão de antecipar aposentadoria

 O ex-repórter da Globo Tonico Ferreira durante cobertura no Haiti, em 2004
O ex-repórter da Globo Tonico Ferreira durante cobertura no Haiti, em 2004 - Divulgação
Laura Mattos
São Paulo

Tonico Ferreira, 71, tinha mais dois anos de contrato para cumprir na Globo e chegaria perto de completar 40 na emissora, mas decidiu sair em abril. É verdade que queria mais tempo para a família, para estudar e viajar, como disse na carta à direção de jornalismo.

Mas agora, passada a eleição, admite que outra razão pesou: o clima político e a agressividade contra jornalistas.

Qualquer cobertura com multidão, diz, tornou-se um  risco para os repórteres, principalmente os de TV, mais conhecidos. É algo que “vai tirando o prazer da profissão” ouvir as pessoas xingando a imprensa, a Globo, colocando cartazes na frente de jornalistas ao vivo, como aconteceu com ele quando cobria a prisão do ex-ministro José Dirceu, em 2015.

O petista aliás, é um velho conhecido de Tonico, que, antes da Globo, foi um nome importante da imprensa de oposição à ditadura. Seu primeiro salário só foi pago porque Dirceu, então seu colega no movimento estudantil, organizou um pedágio na rua para arrecadar dinheiro para o jornal.

Em 1984, Tonico, quando cobria um comício das Diretas Já, falou, brincando, em entrevista a Ernesto Varella, personagem de Marcelo Tas: “Fui dos jornaizinhos de oposição para o jornalão da situação”.

E admitiu que a Globo havia vetado até então a cobertura do movimento. Sobre a ousadia de ter dito isso sobre a empresa que o empregava, e em plena ditadura, afirma hoje: “A única coisa que não pode acontecer com um jornalista é se acovardar, perder a audácia. Mesmo no momento atual, tem que ser audacioso”.

Foi com uma reportagem ousada sobre um desvio de verba destinada à agricultura em Pernambuco, o “escândalo da mandioca”, que ganhou o prêmio Vladimir Herzog, em 1982.

Estava começando na Globo e já entrava para o primeiro time de repórteres. À Folha, ele relembra os 51 anos de um trabalho em que acompanhou de perto a história do Brasil, além de coberturas internacionais, lamenta a intimidação a jornalistas e revela a ideia de criar uma associação de defesa à liberdade de imprensa. 

 

Fotógrafo aéreo
Sou de Santos. Meu pai se separou da minha mãe quando eu tinha 6 anos. Teve encontros comigo por dois anos, depois nunca mais o vi. Voltei a vê-lo após 50 anos. Ele estava doente, em Atibaia. Conversamos por duas horas. Vim a São Paulo pensando em como ajudá-lo. Quando cheguei, recebi um telefonema dizendo que tinha morrido. Morreu 45 minutos depois que saí. Era fotógrafo aéreo.

José Dirceu
Entrei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da USP, em 1966. Todo mundo era comunista. Quem não era fingia ser [risos]. Fui fazer jornais de esquerda como diagramador. O primeiro foi o Amanhã, do grêmio da Faculdade de Filosofia. Quando o jornal acabou, eu tinha direito a três salários, mas ganhei um. O grêmio não tinha dinheiro. O Zé Dirceu fez pedágio na rua, voltou com um saco de dinheiro e nos pagou.

Censura
A primeira vez que vi censor foi em 13 de dezembro de 1968, dia do AI-5. Chegaram dois na Folha da Tarde [onde Ferreira trabalhava]. Depois passaram a mandar instruções por telex. Quem desobedeceu foi submetido a censura prévia.

Saí da Folha da Tarde, passei pela revista Realidade, até criar um jornal para tentar ter liberdade, o Opinião, em 1972, no Rio. Desde 1967, quando parte da esquerda foi para a luta armada, estava fácil para o regime enfrentar esses grupos. Foi só sair matando, torturando, prendendo. Fizemos o jornal com empresa formal, endereço, tudo aberto, para enfrentar a ditadura no campo que é pior para ela, o democrático. 
Logo tivemos censura prévia. Eu entregava o material e voltava com rabiscos em palavras, trechos, artigos. Uma vez um major disse: "Ih, cortaram muito, não vai sair jornal. Peguem em armas e vamos atrás de vocês". Respondi: "Não, vou para a Redação e trago mais material hoje ainda".

Sem cigarro
Em 1975 entrei no projeto de um jornal de oposição, o Movimento, que fizemos por cinco anos. A esquerda foi se dividindo, vários jornais surgiram e todos morreram. Eu tinha dois processos pela Lei de Segurança Nacional, só não fui condenado porque veio a anistia. A esquerda é muito sectária e me enchi daquilo, das dificuldades. Deixei de fumar porque não tinha dinheiro para comprar cigarro, olha que bom! Recebi um convite para ir para a Band e logo depois para a Globo, em 1981.

Diretas-Já
Na Globo, havia uma luta diária contra a censura. As TVs são concessões do governo, é fácil pressioná-las. Cobram a Globo por não ter apoiado de início as Diretas-Já, mas a pressão era enorme. Eu cobri o primeiro ato em São Paulo, no Pacaembu. Depois veio a proibição na empresa.

Isso não impediu o movimento de crescer, também em cima da Folha [que apoiou as Diretas]. As pessoas acham que a Globo é capaz de fazer presidente, derrubar, mudar a política. Se fosse assim, as Diretas não teriam ido para a frente. Claro que quando entra, alavanca, mas não tem toda essa força que pensam.

Quando a gente conseguiu colocar algo das Diretas no ar, mesmo sendo aquela matéria torta, falando mais sobre o aniversário de São Paulo, comemorado naquele dia do comício, vibramos. Como o movimento cresceu, dali para a frente foi liberado.

Agressividade 
Nos últimos tempos, toda manifestação é um problema de segurança para os jornalistas, principalmente de TV, conhecidos. Pode ser do Bolsonaro, do PT, é pressão enorme para as equipes na rua. Quando junta gente, se você cai, fica difícil, todo mundo dá um pontapé anônimo. 

Fui muito importunado quando cobri a prisão do Zé Dirceu. Havia um pessoal do PT, que até me conhecia. Eu disse: "Gente, por favor, deixa só a gente entrar ao vivo".

Quando entrei no Jornal Nacional, colocaram cartazes, eu tentava falar e não paravam de gritar. Sempre nos abordam dizendo "a Globo mente, fora Rede Globo" etc. Temos que tentar negociar, não podemos sair correndo que é pior.

O ambiente não é bom e sofremos com isso. É chato trabalhar assim, todo mundo bate em você. A sociedade está dividida, raivosa, e os jornalistas são intimidados. Isso começa a tirar o prazer da profissão. Passamos a mandar produtores e não repórteres conhecidos para alguns eventos, filmar com celular e não com grandes equipamentos.

Quando houve o caso da Patrícia [Campos Mello, repórter especial da Folha, ameaçada nas redes sociais após revelar que empresários impulsionaram disparos por WhatsApp contra o PT], fiquei pensando sobre o quanto estamos fracos na nossa defesa.

Temos um sindicato capaz de dizer que [determinados ataques] estão certos. Quem nos defende são as empresas. Estou pensando em fazer alguma coisa, uma associação. Estamos vulneráveis e precisamos de algo forte, suprapartidário, defendendo a liberdade de imprensa.

Esquerda e direita
Esperam que a Globo, a Folha, sejam de direita ou esquerda, e não serão. São mais de centro, com seus princípios. Por que não fazem seu próprio jornal ou TV?

Quando eu fazia imprensa alternativa, achava que um daqueles jornais se tornaria forte com a redemocratização, como aconteceu com o Le Monde, na França, com o El País, na Espanha. 

Mas não sobreviveu nenhum e não surgiu nada no governo do PT, quando havia condições. Quem é o jornal de esquerda no Brasil? As sucursais do El País, do Guardian [inglês]. É lamentável que tenhamos que ter uma imprensa estrangeira para representar a opinião de parte da população. Também seria bom haver um de direita.

No debate é que vamos nos acertar. A direita estava dentro do armário, e a imprensa errou em não perceber isso, que havia um Brasil indignado, uma classe saiu da pobreza, chegou em cima e não achou nada, só violência, políticos roubando. Isso passou batido, a imprensa tem que pensar se não está distante da população.

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