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Bolsonaro acentua conflito de interesses em terras indígenas

Empresas e ruralistas se mobilizam em torno de projetos que prometem elevar ganho de índios em seus territórios

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O presidente eleito, Jair Bolsonaro, recebeu no Rio a índia Ysani Kalapalo, identificada como “da tribo do Xingu”
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, recebeu no Rio a índia Ysani Kalapalo, identificada como “da tribo do Xingu” - Reprodução/Verdade Política
 
São Paulo

Índios, parlamentares e empresários estão se mobilizando para uma nova fase de conflitos de interesses na exploração de territórios indígenas no país.

No setor privado, há expectativa de novos negócios com a posição do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), de dar mais autonomia aos índios no uso de suas terras e, principalmente, de não demarcar novos territórios.

No Congresso, deputados ruralistas aceleram projetos que ampliam o uso das terras, mas sofrem resistência de lideranças indígenas, que também buscam oportunidades.

O estopim da mobilização foram as declarações de Bolsonaro há um mês, via rede social, ao lado da índia Ysani Kalapalo, da tribo Xingu.

"Muitos querem condenar vocês a ficar isolados dentro de uma terra indígena, como algo raro que tivesse que ficar num zoológico. Vocês não merecem. Vocês são brasileiros e têm todo o direito de explorar a terra de vocês ["¦] e até vender parte delas se assim desejarem", disse Bolsonaro.

Ele sugeriu que os índios usem as reservas para obter royalties de hidrelétricas e de outros projetos: "Elas não podem continuar sendo apenas preservadas para o bem não se sabe de quem".

Um grupo de 40 empresas nacionais e estrangeiras já prepara proposta de projeto de lei a ser encaminhada ao novo governo para tentar viabilizar projetos em áreas indígenas ou em seu entorno.

A ideia, segundo Gil Maranhão, diretor da francesa Engie, é que os índios afetados tenham direito a um percentual das receitas de novas hidrelétricas. O dinheiro faria parte de um fundo administrado pelos indígenas, pela Funai (Fundação Nacional do Índio) e por empresas gestoras de recursos.

"O objetivo é que os índios se sintam parte do negócio e usem o dinheiro em áreas do seu interesse", diz Maranhão.

O Brasil tem 721 terras reconhecidas pela União como tradicionalmente ocupadas por povos indígenas em diferentes fases do processo demarcatório, segundo o Instituto Socioambiental (ISA).

Cerca de dois terços delas já foram homologados e o restante encontra-se em estágios anteriores. A promessa de Bolsonaro de cancelar novas demarcações pode interromper 129 processos em andamento.

As 486 áreas já homologadas cobrem cerca de 14% do território nacional, e 517 mil índios vivem em terras indígenas, menos de 0,3% da população. No Censo de 2010, cerca de 897 mil pessoas (0,4%) se declararam indígenas, dentro e fora das reservas.

Segundo o IBGE, "os índios constituem um dos segmentos mais desfavorecidos do ponto de vista econômico, habitacional, educacional e dos indicadores de saúde no país".

Dois terços dos que vivem em terras indígenas não têm renda e, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, quase 55% dos índios (dentro e fora desses territórios) saíram "da situação de miséria" por causa do Bolsa Família.

Lideranças indígenas e ONGs afirmam que o perfil socioeconômico dos índios não pode ser comparado ao da população em geral, e que a prioridade nas terras deve ser a preservação, não os negócios. Na prática, porém, há invasões e uso irregular de algumas terras já homologadas, muitas vezes com a conivência de lideranças indígenas.

Além desses territórios, são as terras ainda não regularizadas as que mais atraem o interesse de investidores.

Para Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, a questão do potencial energético e das terras dos índios no país é uma "unanimidade ao contrário". "Ninguém está satisfeito", diz.

O artigo 231 da Constituição garante aos índios o direito sobre as terras, mas não há regulamentação formal sobre como se deve dar a consulta a eles sobre a eventual exploração, nem os termos para compensações --o que acaba gerando insegurança jurídica e o abandono de projetos.

Sales afirma que, dos 250 gigawatts (GW) em potencial hidrelétrico no país, 100 GW já são explorados. Dos 150 GW que sobram, 100 GW estão em reservas ou em unidades de conservação.

Ele diz que mesmo os 50 GW restantes não são explorados por estarem próximos das terras dos índios ou em áreas que podem virar reservas.

"Diante de uma insegurança enorme, o potencial simplesmente não é explorado", diz.

No caso das 40 empresas que elaboram o projeto de lei a ser apresentado ao governo Bolsonaro, há projetos para explorar até 70 GW.

Outras propostas de mudanças legais em tramitação no Congresso, porém, vão além e pretendem facilitar ainda mais a exploração de recursos nesses territórios e estabelecer como passíveis de novas demarcações somente terras em posse dos índios em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

O deputado ruralista (reeleito) Jerônimo Goergen (PP-RS), à frente de algumas dessas iniciativas, diz que o objetivo é ter "regras claras para que os índios possam fazer o arrendamento de suas terras".

"Não podemos ser hipócritas. Alguns índios já fazem isso de modo ilegal, criando uma divisão entre ricos e pobres dentro de seu próprio território", afirma Goergen.

Para o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), o que esses novos projetos visam é retirar dos índios o direito que hoje eles têm à consulta prévia para a realização de projetos, já que o aproveitamento hídrico e mineral das terras indígenas não é vedado pela Constituição. "O que defendemos é o conceito constitucional do usufruto exclusivo das terras por parte dos respectivos povos que tradicionalmente as ocupam", diz Cleber Buzatto, secretário-executivo do Cimi. Para ele, a forma de consulta prévia deve depender de cada povo.

Já Valéria Paye, coordenadora da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), considera "perverso" o modo como Bolsonaro coloca seu discurso em relação aos benefícios que os índios poderiam obter com o uso de suas terras. "Seria diferente se nós estivéssemos falando dessa autonomia, não no sentido do uso capitalista das terras, mas da valorização do que já é produzido pelos índios."

Ela cita exemplos como a exploração da castanha por tribos no Pará, que comercializam o excedente produzido. "O que nos falta é incentivo do setor público."

A deputada federal eleita Joênia Wapichana (Rede-RR), primeira mulher indígena a ocupar essa função, vai na mesma linha. "É preciso apoio público a projetos sustentáveis, e não mudar a lei para aumentar o uso dessas terras."

"Se a exploração ilegal já é ruim, espere para ver como será quando isso for legalizado."

Mas segundo Juliana Simões, secretária de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável do Ministério do Meio Ambiente, os recursos públicos oficiais da área para esse tipo de atividade sustentável hoje são exíguos —R$ 1,8 milhão neste ano e R$ 1,9 milhão previstos para 2019. Ela diz que atualmente o desmatamento em terras indígenas é insignificante, por conta da preservação que os próprios índios fazem.

"Mas a conservação pode ser perdida para outras atividades se não houver oferta de mais oportunidades às próprias populações indígenas."

Segundo o Cimi, no ano passado houve 96 casos de invasões, desmatamentos e de explorações ilegais dentro de terras indígenas. Procurada nos últimos dias, a Funai não respondeu a questionamentos da reportagem.

Especula-se que no governo Bolsonaro o órgão saia do Ministério da Justiça, e indigenistas temem que ele seja transferido para o Ministério da Agricultura, sob o comando da deputada e líder ruralista Tereza Cristina (DEM-MS).

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