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Apesar de pontos em aberto, lei contra abuso tem retaguarda de Promotoria e juízes

Um das questões é o argumento do terror, segundo o qual querem perseguir policiais, promotores e juízes

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São Paulo

A Câmara dos Deputados aprovou na semana passada projeto de lei que já havido sido votado no Senado com um redesenho do crime de abuso de autoridade.

Polêmico, o projeto requer que se enfrentem duas questões.

Primeiramente, convém criminalizar os abusos de autoridade? With great power, comes great responsibility (com grandes poderes vêm grandes responsabilidades); essa frase se popularizou muito, quem sabe por retratar com simplicidade um dos eixos centrais do Estado democrático de Direito: quem tem poder, há de ser controlado na mesma intensidade, sob pena de se resvalar na tirania.

E não se pode negar o crescente poder dos órgãos que integram o sistema de Justiça criminal: prisão temporária, lei dos crimes hediondos, endurecimento das normas penais e das regras de cumprimento de pena, restrição da prescrição, estreitamento dos caminhos para recursos, criação –via acordo de colaboração premiada– de regime de cumprimento de pena sem previsão legal e com cláusulas em que se abre mão de direitos como o de recorrer ou ao habeas corpus.

Isso sem esquecer figuras sancionadoras, tais como a improbidade administrativa e a Lei da Ficha Limpa.

Plenário da Câmara, que aprovou na quarta (14) projeto que pune abuso de autoridade
Plenário da Câmara, que aprovou na quarta (14) projeto que pune abuso de autoridade - Pedro Ladeira - 7.ago.19/Folhapress

Uma segunda questão é o argumento do terror, segundo o qual querem aprovar a lei sobre abuso para perseguir policiais, promotores e juízes.

Pode até ser que setores do Congresso se movam com essa intenção, mas não se pode esquecer que, sancionada a lei, caberá ao Ministério Público promover a ação penal. E mais: eventual ação será proposta, em regra, perante tribunais, por causa da prerrogativa de foro da maioria das autoridades.

Perseguição, portanto, só será possível pelo Ministério Público –e com beneplácito do Judiciário, em órgão colegiado.

No campo jurídico, o projeto melhorou quando comparado à redação do Senado, repleta de previsões vagas ou perigosas, como a de criminalizar manifestação de opinião de promotores e juízes ou mesmo o simples fato de ser sócio de empresa.

Desde logo o projeto agora aprovado estabelece duas premissas interpretativas de todos os tipos:

1) Que os crimes sejam cometidos com a finalidade específica de prejudicar outrem, ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal;

2) Não é crime de abuso de autoridade a divergência na interpretação da lei na avaliação de provas e fatos.

E as condutas incriminadas –embora muitas já quase naturalizadas entre nós– são mesmo incompatíveis com a ordem democrática.

Quem acharia razoável uma autoridade prender alguém sem ordem judicial ou que não esteja em flagrante delito? Ou, ainda, que se mantenha alguém preso, sem justificativa, depois de ordem judicial determinando sua soltura? E a manutenção de presos de sexos diferentes no mesmo espaço, ou adultos com adolescentes?

Também será abuso de autoridade a alteração intencional da cena de crime, pela autoridade, com vistas a se eximir de seu crime, ou aquele que obrigue funcionário de hospital a admitir alguém já morto, com vistas a alterar as circunstâncias do óbito.

Essas figuras receberão pena de um a quatro anos, de modo que, como regra geral, não admitem prisão preventiva. E, em caso de condenação, a pena deverá ser substituída por restritivas de direitos. Admitirão, ainda, a suspensão condicional do processo, medida que evita condenação, e a perda da primariedade, se devidamente cumpridas as condições impostas pelo juízo.

Entenda as regras do projeto que endurece punição para abuso de autoridade

Considera-se também abuso de menor potencial ofensivo, entre outros, a autoridade deixar de se identificar, por exemplo, quando realiza uma prisão. Da mesma forma, impedir a entrevista do preso com seu advogado. Ainda, impedir ou coibir, sem justa causa, a reunião pacífica de pessoas para fim legítimo.

Por suas penas mais baixas, todas comportarão transação penal (acordo com o Ministério Público) em troca de medidas imediatas, como pagamento de cestas básicas e suspensão condicional do processo.

Mesmo nos efeitos da condenação houve marcada ponderação legislativa: o condenado só perderá o cargo, mandato ou função pública, ou será para eles inabilitado por um a cinco anos, quando for reincidente em crime de abuso de autoridade –e por sentença devidamente fundamentada.

Não fossem os destinatários da norma quem são, os punitivistas bradariam pela suavidade dos novos crimes. O projeto, porém, ainda contém figuras abertas demais.

O projetado artigo 30 incrimina o início da ação penal sem justa causa, conceito jurídico cujo alcance comporta certa elasticidade interpretativa.

O 33, por sua vez, criminaliza a exigência de informação ou de cumprimento de obrigação sem expresso amparo legal, o que vai de encontro ao poder geral de cautela, aberto, por definição, quanto às medidas judicialmente aplicáveis.

O artigo 36, por fim, impõe pena a quem decretar, em processo judicial, indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte.

O antídoto parece estar contido nas premissas interpretativas já apontadas acima: comprovação de especial intenção de prejudicar o cidadão, excluídas interpretações divergentes e fundamentadas do magistrado.

EXEMPLOS DE CONDUTAS SÃO CONSIDERADOS ABUSO DE AUTORIDADE

  • Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado sem que antes a pessoa tenha sido intimada a comparecer em juízo
  • Usar algemas em quem não resista à prisão, não ameace fugir ou represente risco à sua própria integridade física ou à dos demais
  • Invadir ou adentrar imóvel sem autorização de seu ocupante sem que haja determinação judicial e fora das condições já previstas em lei (não há crime quando o objetivo é prestar socorro, por exemplo). Essa é uma queixa recorrente de moradores de favelas, especialmente do Rio de Janeiro, que afirmam que não raro policiais invadem suas casas sem mandado judicial e sem sua autorização
  • Fotografar ou filmar, permitir que fotografem ou filmem, divulgar ou publicar fotografia ou filmagem de preso sem seu consentimento com o intuito de expor a pessoa a vexame 
  • Dar início a processo sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente
  • Grampear, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei
  • Coibir, dificultar ou impedir, por qualquer meio, sem justa causa, a reunião, a associação ou o agrupamento pacífico de pessoas para fim legítimo
  • Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado
Davi Tangerino

Professor de Direito penal da FGV-SP e da Uerj, sócio de Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados

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