Morre Henry Sobel, 75, rabino símbolo da defesa dos direitos humanos no Brasil

Ele não resistiu a complicações associadas a um câncer no pulmão; enterro será em Nova Jersey, nos EUA

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São Paulo

Morreu na manhã desta sexta-feira (22), em Miami (EUA), o rabino Henry Sobel, 75. Segundo sua assessoria, ele não resistiu a complicações associadas a um câncer no pulmão. O sepultamento será neste domingo (24), em Nova Jersey. Ele deixa a esposa e uma filha.

Rabino emérito da Congregação Israelita Paulista, Sobel teve forte atuação na defesa dos direitos humanos no Brasil. Quando o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado, em 25 de outubro de 1975, o jovem rabino Sobel não engoliu a versão oficial da ditadura militar.

Enfrentando pressões, realizou o enterro do jornalista no centro do cemitério, se recusando a aceitar a alegação de suicídio —o que, segundo a religião judaica, o levaria a fazer o sepultamento nas margens do lugar.

Dias depois, Sobel liderou, junto com d. Paulo Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo, e Jaime Wright, pastor presbiteriano, o célebre ato ecumênico em homenagem a Herzog. A catedral da Sé ficou lotada e uma multidão tomou conta da praça, num silencioso e contundente protesto contra a ditadura.

Nascido em Lisboa (Portugal), Sobel se mudou para Nova York na infância com a família. Nos anos 1970, aceitou o convite para se tornar rabino da CIP (Congregação Israelita Paulista), em São Paulo, onde residiu até 2013, quando trocou o Brasil por Miami.

No tratamento contra o câncer, o líder religioso fez cirurgia para a retirada do tumor "há alguns anos", disse à coluna Mônica Bergamo nesta sexta o rabino Michel Schlesinger, que sucedeu Sobel à frente da CIP.

Segundo ele, Sobel chegou a retirar uma parte do pulmão e passou por quimioterapia, mas a doença voltou. "Lutou bastante, mas, cada vez que eu o encontrava, ele estava mais debilitado", afirmou Schlesinger.

​​Sobel também ficou marcado pelo episódio das gravatas —quando, em 2007, foi detido por causa do furto de quatro peças de grife (Louis Vuitton, Armani, Giorgio’s e Gucci) em uma loja nos EUA.

Inicialmente, ele atribuiu o delito a uma confusão mental provocada por uso de medicamentos. Pagou uma fiança de US$ 3.680 após passar uma noite preso e acabou liberado.

"Trinta e sete anos [no Brasil] e puf! Fiz o impensável", desabafou, trêmulo, em um filme sobre a sua trajetória lançado em 2014.

À época, sofrendo de depressão e confuso com a medicação, o rabino encarou o precipício: foi afastado da direção da Congregação Israelita Paulista e passou a ser execrado e ridicularizado.

Segundo um dos depoimentos no filme, setores conservadores do judaísmo, sempre insatisfeitos com a atuação aguerrida de Sobel, aproveitaram o episódio para tirá-lo de cena.

O rabino, em entrevista coletiva na época dos fatos, falou ser "muito difícil" para ele "explicar o inexplicável". Em entrevista à Folha em 2014, no entanto, afirmou: “Foi uma falha moral minha”.

 “Por que eu fiz aquilo? Como se justifica? Ainda não achei a resposta, mas certamente vou trazer uma de volta de Miami”, acrescentou, referindo-se à sua mudança, na ocasião, para os EUA. 

Autobiografia

Em sua autobiografia "Um Homem. Um Rabino", publicada em 2008, Sobel abordou principalmente as relações com a família, a religião e a política. Dedicou um considerável espaço ao seu envolvimento "na luta contra a ditadura militar", com um certo tom heroico.

Num capítulo intitulado "Vladimir Herzog", ele lembrou que se recusou a enterrar o jornalista judeu como "suicida" —causa mortis divulgada oficialmente pelo regime militar.

O rabino relatou o diálogo que teve com "um funcionário" da Congregação Israelita Paulista: quando o rapaz citou sinais de tortura no corpo de Herzog, Sobel disse: "Então não vamos enterrá-lo como suicida".

O "funcionário" então questionou: "O sr. tem certeza, rabino?". Ao que Sobel respondeu: "Total. Se alguém perguntar, diga que é um pedido do rabino Sobel".

Ainda na obra, ao escrever sobre "a mídia e o poder", ele afirmou: "A verdade é que, a partir do caso Vladimir Herzog, ganhei uma projeção na mídia que jamais imaginara ao desembarcar no Brasil. O que, é claro, nunca havia sido meu objetivo: o engajamento obedeceu a um dever de consciência, a convicções religiosas e humanistas. Porém, o fato é que eu me tornara um judeu conhecido nacionalmente".

Celebridade

Figura notória por aparecer em publicações que iam desde as revistas da comunidade judaica até a Caras, Sobel reservou um capítulo de sua autobiografia para os "chiques e não famosos".

Ali, deixando transparecer um certo deslumbramento com a alta sociedade, citou as bênçãos que concedeu a casais "mistos" (de religiões diferentes), como Marta Suplicy e Luis Favre; Thereza Collor e Gustavo Halbreich; John Neschling e Patrícia Melo.

No de Luciano Huck e Angélica, ele diz que ficou "muito impressionado com a lista de convidados". "Havia gente famosíssima: Gilberto Gil, Abílio Diniz, Naomi Campbell... Mas também estavam lá dezenas de funcionários da Rede Globo, de todos os níveis, muita gente simples."

Todos foram tratados com a mesma fineza que os chiques e famosos. "Foi um exemplo de dignidade", disse o rabino, sempre disposto a reforçar sua luta pela igualdade social.

Marido e pai ausente

No capítulo "Em família" da autobiografia, ele contou sem muito entusiasmo que "hoje, passados mais de 30 anos, meu casamento com Amanda é bom".

Tanto Amanda quanto a filha do casal, Alisha, nascida em 1983, se queixaram em diferentes momentos de um marido e um pai ausente, por causa da dedicação ao trabalho.

Alisha casou-se em 2014 com o executivo Luis Carlos Szuster.

No fim da obra, quando volta a falar das gravatas, Sobel lembra da "solidariedade e o calor humano" que recebeu de personalidades como o ex-presidente Lula, o ex-governador de São Paulo José Serra (PSDB) e o ex-arcebispo de São Paulo Cláudio Hummes.

"Não falo com essas pessoas pela influência. São amigos de verdade", afirmou, desconversando sobre a versão de que o grau de influência de seus relacionamentos, de certa maneira, ajudou a preservá-lo no episódio.

Repercussões da morte

"Henry Sobel, que acaba de falecer, foi um bravo na hora difícil, quando vigia o autoritarismo. Expresso por isso meu pesar."

Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ex-presidente da República

"A contribuição de Sobel para a redemocratização e o diálogo entre religiões no Brasil foi incomensurável. O nosso país é devedor da sua coragem ao recusar a farsa da versão oficial da ditadura de que a morte de Vladimir Herzog teria sido um suicídio.

O seu trabalho junto com dom Paulo Evaristo Arns e o reverendo James Wright em defesa dos direitos humanos trouxe luz a um período sombrio da nossa história. Sobel era um dos protagonistas e um exemplo dessa bela história de tolerância e diálogo inter-religioso.

Tive a honra de participar com Sobel de várias cerimônias em memória das vítimas do Holocausto na Congregação Israelita Paulista. Nenhum de nós pode deixar que a memória do Holocausto seja apagada e que tais tragédias se repitam. E cabe também a todos nós, brasileiras e brasileiros, preservarmos a memória das ações de Sobel pela democracia e pela tolerância e liberdade religiosa."

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ex-presidente da República

"Henry Sobel foi a primeira pessoa, representando uma instituição, que denunciou o assassinato do meu pai, poucas horas depois do ocorrido. Junto com dom Paulo Evaristo Arns e James Wright, corajosamente, promoveu e esteve presente no ato ecumênico em memória de meu pai na Catedral da Sé.

Quebrando protocolos do judaísmo, enfrentando resistência dentro da comunidade judaica, foi um dos protagonistas que abriram caminho para o fim da ditadura no Brasil. Se meu pai foi uma das vítimas daquele período, Henry Sobel foi um dos grandes heróis. Registro aqui minha homenagem e saudades desta pessoa que faz parte da minha vida."

Ivo Herzog, presidente do conselho deliberativo do Instituto Vladimir Herzog e filho do jornalista (1937-1975)

“A comunidade judaica e o Brasil perdem não só um defensor inegável dos direitos humanos e dos valores judaicos, mas uma figura ímpar, que deixou marca indelével na história do país.”

Fernando Lottenberg, presidente da Conib (Confederação Israelita do Brasil) 

"Henry Sobel foi o maior representante que a comunidade judaica brasileira já teve. De seu modo contundente e carismático, comunicou os valores judaicos humanistas para o nosso país. Quando denunciou o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, contribuiu de maneira definitiva para a redemocratização do Brasil."

Michel Schlesinger, rabino da CIP (Congregação Israelita Paulista) e representante da Conib (Confederação Israelita do Brasil) para o diálogo inter-religioso

"Henry Sobel foi um líder religioso de extraordinário carisma, um homem de fé comprometido com os embates de seu tempo. O nome do rabino Henry Sobel estará para sempre marcado nos livros da história deste país.

Em nome da comunidade judaica do estado de São Paulo, prestamos nossas homenagens e transmitimos condolências à família e força aos enlutados."

Fisesp (Federação Israelita do Estado de São Paulo)

"Sobel foi digno e teve a força que se espera dos líderes. Em tempos em que as sombras do arbítrio teimam em nos ameaçar no país e na comunidade, Sobel se vai como herói. Que sua memória seja abençoada e que seu exemplo seja seguido."

Organização Judeus pela Democracia

"Triste notícia. O rabino Henry Sobel esteve presente em momentos importante da minha vida. Se foi uma voz firme e potente na defesa dos direitos humanos no Brasil. Um homem de diálogo, construtor de pontes religiosas e ideológicas."

Luciano Huck, apresentador e empresário

"Há 75 anos, atuando na luta pelos direitos humanos, contra o antissemitismo, toda forma de discriminação e, sobretudo, a melhoria do mundo, vemos calar, hoje, essa voz firme que ecoava não apenas na comunidade judaica, mas na sociedade em geral.

Sobel foi o maior líder comunitário de todos os tempos. Ele me acompanhou em todos os momentos de minha vida, foi um grande amigo. Perdemos um grande líder, que nos deixou um enorme legado. Lamentamos sua partida e associamo-nos a dor da perda da família e amigos."
 
Jack Terpins, presidente honorário do Congresso Judaico Latino-Americano

"Foi com profunda tristeza que recebi a notícia do falecimento [...]. Tenho certeza de que o conteúdo desta nota é insuficiente para traduzir a importância de Henry.

Nós, judeus, perdemos um grande líder espiritual. Seremos eternamente gratos pela dedicação dele à nossa comunidade. Em nome do Parlamento brasileiro, transmito condolências aos familiares e amigos de Henry Sobel."

Senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Congresso Nacional

"Morreu nesta manhã o rabino Henry Sobel. Uma das mais importantes vozes e figuras na luta contra a tortura no regime autoritário. Teve papel fundamental no esclarecimento da morte do jornalista Vladimir Herzog. Um grande homem e uma perda imensa para todos nós. Era meu amigo pessoal."

José Serra (PSDB-SP), senador e ex-governador de São Paulo

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