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Ronaldo de Almeida e Clayton Guerreiro

Bolsonaro e igrejas evocam liberdade religiosa sem considerar bem-estar no coronavírus

Reações à pandemia no meio evangélico variam conforme a fé genuína, o sentimento de solidariedade, a demagogia religiosa e o oportunismo irresponsável

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Ronaldo de Almeida Clayton Guerreiro

Disse Jesus em Mateus 18:20 “Onde houver dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles”. Mas o que fazer quando um vírus (agnóstico e penetra) ameaça contaminar a roda de fiéis e levá-los à doença e, em alguns casos, à morte?

Como é de se esperar em momentos com ares apocalípticos, as religiões são interpeladas a orientar seus adeptos e a dar sentido à possibilidade de morte coletiva que se avizinha.

As religiões de matriz afro-brasileira não têm um centro de comando unificado, mas, por notícias vindas de vários lugares, os terreiros têm aderido ao isolamento social. A Federação Espírita Brasileira orientou os centros espíritas a seguir as diretrizes dos órgãos de saúde, e salientou que as atividades continuam, embora virtualmente.

Sinagogas judaicas e mesquitas islâmicas, igualmente, orientam suas respectivas comunidades a manter o isolamento sanitário. Lideranças políticas em Israel e na Palestina iniciaram um acordo para a suspensão temporária de conflitos históricos. Vale morrer pela guerra política-religiosa, mas não por um vírus recém-nascido.

A posição da Igreja Católica foi dada pelo papa Francisco. A recomendação é para ficar em casa, enquanto os templos ficam abertos para orações sem aglomeração. Em uma cena que ficará para a história, Francisco celebrou sozinho, embaixo de fina chuva, uma missa na praça de São Pedro, concedendo o perdão aos que morrerem por causa do vírus.

Os casos mais controversos, contudo, têm vindo do meio evangélico, no qual as reações ao problema teológico-sanitário variam conforme a fé genuína, o sentimento de solidariedade, a demagogia religiosa e o oportunismo irresponsável.

De modo geral, protestantes históricos e pentecostais têm seguido as orientações sanitárias de fechar os templos para cultos, mas mantendo-os abertos para orações ou atendimentos individualizados. Nas redes digitais explodiram os cultos online. Para estes evangélicos, a virtualidade da internet não é impedimento para a presença de Cristo.

Mas, no sentido oposto, alguns líderes pentecostais têm resistido, desde o início, ao cancelamento dos cultos. Silas Malafaia, Bispo Macedo, R.R. Soares, Valdemiro Santiago e outros nomes menos expressivos têm reverberado as mensagens de Messias Bolsonaro. Três pontos parecem-nos centrais desse posicionamento.

Primeiro, a relação entre as leis dos homens e a lei de Deus. A quem obedecer? Afirmando que as igrejas são o último refúgio para os desesperados, Bolsonaro e estas lideranças evocaram a liberdade religiosa garantida pela Constituição, mas sem levar em consideração a excepcionalidade do momento e o fato de que a própria Constituição garante o bem-estar de todos os cidadãos, religiosos ou não.

Segundo, a centralidade dos templos na prática religiosa, justamente entre aqueles que mais se valem da internet, da televisão e do rádio. Não é por acaso que estas lideranças estão sendo acusadas, por não religiosos e por religiosos, de terem interesses econômicos.

Afinal, como fica a arrecadação de ofertas e dízimos se os templos estão fechados? É curioso como os discursos destas lideranças se somam aos de empresários do ramo varejista. Se a “lojinha” (e os templos?) fechar, ela quebra.

Terceiro, o discurso apocalíptico. Das pragas no Egito do livro de Êxodo às profecias do Apocalipse, a pregação sinaliza que o vírus seria uma espécie de flagelo de Deus ou sinais da segunda vinda de Cristo.

Nestes casos, as mortes em massa são inevitáveis. Atenção: isto serve como vacina teológica para as igrejas milagreiras que dizem curar semanalmente milhares de pessoas, mas não conseguem estancar a pandemia em curso.

Para concluir, vale citar os casos desastrosos das igrejas La Porte Ouverte, na França, e da Shincheonji Church of Jesus, na Coreia do Sul.

Ao insistirem na imunidade espiritual contra o coronavírus, ambas se tornaram focos de disseminação da doença. Posteriormente, o fundador da igreja coreana chegou a pedir publicamente perdão à população, mas já era tarde. Deus pode tê-lo perdoado, mas o vírus que não professa fé alguma não perdoou.

Oremos (sós)!

Lee Man-hee, fundador do culto Shincheonji ajoelha-se em pedido de perdão em Gapyeong, na Coreia do Sul
Lee Man-hee, fundador do culto Shincheonji, ajoelha-se em pedido de perdão em Gapyeong, na Coreia do Sul - 2.mar.20/Yonhap via Reuters
Ronaldo de Almeida

Professor do Departamento de Antropologia da Unicamp e pesquisador do Cebrap, é autor de ‘A Igreja Universal e seus demônios’

Clayton Guerreiro

Doutorando em ciências sociais da Unicamp.

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