Tensão política puxada por Bolsonaro provoca fissuras no Supremo e entre militares

Ministro da Defesa teve que emitir segunda nota em menos de um mês para afastar ideia de que fardados têm intenções golpistas

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Brasília e São Paulo

A elevação da tensão política a partir de gestos do presidente Jair Bolsonaro está provocando fissuras no Supremo Tribunal Federal e entre militares.

No domingo (3), o presidente esteve com apoiadores em manifestação que atacava a corte e o Congresso, entre outras bandeiras antidemocráticas. No ato, repórteres foram agredidos por participantes.

Empolgado com o protesto, Bolsonaro disse estar junto com as Forças Armadas "ao lado do povo" e afirmou que havia chegado "no limite".

Entre os militares, a tensão provocada por Bolsonaro obrigou o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, a emitir a segunda nota oficial em menos de um mês para afastar a ideia de que os fardados têm intenções golpistas.

Bolsonaro conversa com o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, em solenidade em março
Bolsonaro conversa com o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, em solenidade em março - Renato Costa - 4.mar.2020/FramePhoto/Folhapress

Bolsonaro estava decidido a desafiar o Supremo nesta segunda-feira: queria renomear o chefe da Agência Brasileira de Inteligência, Alexandre Ramagem, como diretor-geral da Polícia Federal.

O delegado tivera a posse suspensa por decisão do ministro Alexandre de Moraes (STF), na semana passada. Ramagem é amigo da família de Bolsonaro, e a PF investiga o clã em casos como o inquérito sobre disseminação de fake news.

O presidente acabou desistindo após uma operação que durou boa parte da madrugada, com telefonemas e visitas de aliados e também de políticos não alinhados, como o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).

Seu plano B, contudo, continha uma provocação ao Supremo. Ele designou para a PF um subordinado de Ramagem na Abin, Rolando Souza, e deu posse a ele no Palácio do Planalto.

A primeira medida de Rolando foi iniciar o processo para substituir o chefe da PF no Rio, território da família Bolsonaro que o ex-ministro Sergio Moro disse estar na mira do presidente.

A decisão de Moraes, a despeito de a corte ter feito uma defesa unânime dele ante a acusação do presidente de que sua decisão havia sido política, divide os ministros no STF.

O presidente do colegiado, Dias Toffoli, não foi consultado sobre a questão e considera que Moraes ultrapassou o sinal entre os Poderes. Para ele, houve a prevalência do chamado ativismo judicial na medida.

Nesta segunda-feira, Marco Aurélio Mello vocalizou a preocupação dos ministros. Em ofício a Toffoli, defendeu que suspensões de atos de outros Poderes sejam decididas pelo colegiado de 11 ministros, e não de forma monocrática.

"É uma medida para evitar o desgaste que estamos tendo agora", afirma ele, referindo-se à decisão de Moraes. "Quando se invade área alheia, é sempre um problema seríssimo."

O guru da área digital de Bolsonaro, seu filho Carlos, vereador no Rio, passou o Réveillon passado com Ramagem. Além disso, a PF tem cooperação estreita com as autoridades do Rio que apuram ligações do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho do presidente e hoje senador, com milícias.

O ex-ministro da Justiça Sergio Moro deixou o cargo acusando o presidente de querer mudar a direção e superintendências da polícia por motivos políticos.

No sábado, ele depôs no inquérito do caso, gerando tensão no Palácio da Alvorada. Moro, antes um dos esteios do governo, apresentou histórico de mensagens trocadas com o presidente que, segundo ele, comprovam as intenções de Bolsonaro.

Também no sábado, uma outra decisão do Supremo, impedindo a expulsão de diplomatas da ditadura venezuelana do Brasil, irritou de vez o presidente.

A declaração de Bolsonaro no domingo, de que as Forças Armadas estão "do lado do povo", foi dada um dia depois de se reunir com os três comandantes e os ministros militares no Alvorada.

O ministro Fernando Azevedo, ponto de contato entre os generais do governo e os da ativa, além do Judiciário, elaborou uma nota nesta segunda que admoestou todos os lados da polêmica.

Disse que as Forças Armadas defendem a independência entre Poderes, dando assim razão a Bolsonaro, mas condenou a agressão a jornalistas.

"As Forças Armadas cumprem a sua missão constitucional. Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado, que consideram a independência e a harmonia entre os Poderes imprescindíveis para a governabilidade do país", diz nota.

Ele afirma que a liberdade de expressão é "requisito fundamental" em um país democrático, mas continua dizendo que "no entanto, qualquer agressão a profissionais de imprensa é inaceitável".

Enquanto isso, instado a falar sobre a violência na manhã da segunda, Bolsonaro atribuiu a "alguns possíveis infiltrados" as agressões. E completou: "Pessoal da Globo vem aqui falar besteira. Essa TV foi longe demais", disse, sem repudiar as agressões aos repórteres.

"As Forças Armadas estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade. Este é o nosso compromisso", completa Azevedo no texto.

Nota semelhante havia sido divulgada em 20 de abril, um dia depois de o presidente ir à frente do quartel-general do Exército em Brasília apoiar manifestantes bolsonaristas pedindo intervenção militar contra os outros Poderes.

A associação entre governo e Forças Armadas, inevitável, incomoda setores da ativa dos militares.

Bolsonaro cogitou no fim de semana a troca do comandante da Força, Edson Pujol, a quem os filhos do presidente consideram distante da frequência do pai na condução da crise do coronavírus.

Um eventual substituto, Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), se mobilizou para dizer que não havia nada disso no ar quando a Folha noticiou a possibilidade.

Ela foi aventada talvez para o ano que vem, quando a geração de Ramos chegará à faixa mais longeva na hierarquia do Exército, na reunião que ministros e comandantes militares tiveram com Bolsonaro no sábado.

Nesta segunda, Ramos voltou a negar a hipótese, ligou para Pujol e distribuiu uma mensagem chamando a reportagem de falsa. "Sem mencionar que seria desonroso para mim e total quebra dos valores que todos nós cultuamos, como antiguidade e merecimento", disse.

A desconfiança entre setores da ativa foi, de todo modo, reforçada no episódio. Ramos é muito próximo do presidente, com quem dividiu dormitório como cadete.

Já os fardados do governo, que retomaram o protagonismo neste ano, após serem eclipsados pela ala ideológica bolsonarista em 2019, têm alternado apoio ao presidente e freios de arrumação.

Se na noite de domingo a ação era para evitar a nomeação de Ramagem, na manhã seguinte os generais Azevedo, Ramos, Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Walter Braga Netto (Casa Civil) prestigiaram a posse-relâmpago de Rolando.

A nota de Azevedo também explicitou o que já havia sido enviado como recado às cúpulas do Congresso e do Judiciário na semana passada.

Os militares consideram que sim, os Poderes têm se excedido no contraponto ao Executivo, o que não significa que embarcariam em qualquer movimento autoritário por parte do Planalto.

Além de Azevedo, falou também o único nome indemissível da ala fardada: o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva. Ele criticou o Supremo. "Julgo que cada um tem que navegar dentro dos limites da sua responsabilidade", afirmou em entrevista à Rádio Gaúcha.

"Os casos mais recentes, que foi da nomeação do diretor-geral da Polícia Federal, a questão dos diplomatas venezuelanos eram decisões que são do presidente da República", afirmou o vice.

"É responsabilidade dele, é decisão dele escolher seus auxiliares, assim como chefe de Estado ele é o responsável pela política externa do país."

Na linha de Azevedo, Mourão defendeu que "os Poderes têm que buscar se harmonizar mais e entender o limite da responsabilidade da cada um".

Ele disse também entender que "hoje existe uma questão de disputa de poder entre os diferentes Poderes, existe uma pressão muito grande em cima do Poder Executivo".

O problema de fundo, como notou um político próximo da área militar, é que os fardados pagam um preço constante por sua simbiose com o governo de Bolsonaro e seus arroubos autoritários.

O presidente se viu completamente isolado em março. Havia comprado briga com governadores de Estado, com o Congresso e com o Supremo.

Sua gestão da crise do coronavírus, opondo-se a práticas internacionais e minimizando ao chamar de "gripezinha" a doença que já matou mais de 7.000 brasileiros, lhe garantiu mais críticas.

Apoiou-se nos militares, e aos poucos abandonou a retórica purista e começou a negociar cargos com o centrão para evitar apoio a um eventual processo de impeachment.

Por ora, a barganha está sendo operada, enquanto o Supremo acelera a análise das acusações de Moro a Bolsonaro —outra fonte de contrariedade do presidente. Isso mantém a pressão por um impedimento congelada, por ora.

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