Decisão de Moraes contra perfis de bolsonaristas extrapola jurisdição e abre precedente para conflitos

Ministro do STF amplia multa e intima presidente da empresa no Brasil após site afirmar que não cumpriria ordem de bloqueio

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São Paulo e Brasília

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes aumentou nesta sexta-feira (31) a pressão sobre o Facebook no caso do bloqueio de perfis alvos do inquérito das fake news.

Após a empresa afirmar que não cumpriria a decisão de quinta-feira (30) que determinava o bloqueio internacional de perfis bolsonaristas, Moraes ampliou de R$ 20 mil para R$ 100 mil a multa diária pelo descumprimento e intimou o presidente da companhia no Brasil.

Segundo especialistas ouvidos pela Folha, o fato de o ministro ter jurisdição para decidir sobre determinado caso concreto não quer dizer que os efeitos de suas decisões possam extrapolar as fronteiras do Brasil.

A partir desta sexta-feira, com a decisão de Moraes, a multa diária por descumprimento será de R$ 1,2 milhão –no total, 12 contas foram alvos do bloqueio.

O ministro do STF determinou a intimação pessoal do presidente do Facebook no Brasil, Conrado Leister, para que ele recolha a multa pendente e cumpra a determinação quanto ao bloqueio no Brasil e no exterior das contas dos perfis bolsonaristas.

Como mostrou a Folha, após terem suas contas bloqueadas no Brasil, tanto perfis bolsonaristas como seus seguidores puderam continuar a publicar e visualizar mensagens normalmente ao mudarem suas configurações de localização.

O episódio se soma às demais decisões polêmicas do controverso inquérito das fake news. Uma das principais críticas se refere à sua própria instauração: o ministro Dias Toffoli abriu o inquérito sem provocação de outro órgão, o que é incomum.

Foi nessa mesma apuração que houve censura, depois derrubada, aos sites da revista Crusoé e O Antagonista.

A decisão pelo bloqueio das contas dos alvos do inquérito por si só já havia sido alvo de inúmeras críticas por ferir a liberdade de expressão. Isso porque, ao bloquear as contas, o ministro estaria fazendo uma censura prévia e não limitando a circulação de conteúdos ilícitos determinados.

No entanto, a determinação de bloqueio internacional faz com que se entre em uma discussão ainda mais complexa, desta vez sobre direito e soberania nacional.

Segundo o advogado especialista em direito digital Henrique Rocha, "há na prática um extrapolar da jurisdição nacional aqui. Quando a gente avalia um ministro, ainda que do STF, determinando que haja a suspensão de atividades de um acesso realizado no exterior é objeto de curiosidade".

Em sua última decisão, Moraes determina que o bloqueio seja feito "independentemente do acesso a essas postagens se dar por qualquer meio ou qualquer IP, seja do Brasil ou fora dele". O IP se refere à conexão de internet do usuário.

Para Christian Perrone, que é pesquisador de direitos e tecnologias do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio), a decisão abre um precedente complexo e não é boa para o próprio sistema da internet, pois seria muito difícil lidar com a reciprocidade e os conflitos que podem advir dela.

"Imagina que fosse um país ditatorial que impedisse acesso internacionalmente a conta de alguém?", questiona Perrone.

"Quando você está publicando na internet, você pode estar no Brasil, mas você está simultaneamente fazendo essa publicação em diversos lugares no mundo. Será que o juiz brasileiro pode impedir publicação de livro em outro país? Mas por que ele pode impedir a publicação de uma mensagem em todos os demais países?"

O pesquisador questiona o que aconteceria se as mesmas pessoas que são alvo do inquérito fossem a um tribunal no país-sede das empresas, no caso os Estados Unidos, onde o conceito de liberdade de expressão é mais amplo que no Brasil, e dissessem que estão violando esse seu direito. "O que aconteceria se a decisão do juiz de lá tivesse efeitos internacionais?", completou.

Especialistas apontam que há precedentes internacionais de discussões sobre o tema. Um deles ocorreu na França e se referia a casos em se pedia para que as referências a determinada pessoa fossem excluídas dos sites de busca.

O Conselho Nacional de Informática francês queria que os pedidos de retirada de resultados na França valessem no mundo todo. O Google discordou, e o caso seguiu para o Tribunal de Justiça da União Europeia, que deu vitória à empresa.

Segundo a decisão da corte, no caso de decisões de remoção em um dos países da União Europeia, a empresa ficaria obrigada a remover as referências apenas dentro do bloco.

De acordo com Francisco de Mesquita Laux, especialista em direito digital e tecnologia, o argumento foi de que a corte não tinha como avaliar como o direito de outros países aborda determinada situação.

Laux questiona o motivo pelo qual determinou-se o bloqueio das contas alvos no inquérito do Supremo em outros países.

"Essas pessoas que estão acessando essa informação e as pessoas que o STF considerou que estão cometendo ilícitos no Brasil estariam cometendo ilícitos também no exterior? Não houve essa apuração de ilicitude ou não da conduta no estrangeiro, até porque não é nem competência do STF fazer isso."

De acordo com o advogado Leonardo Sica, doutor em direito penal pela USP, há um caminho já estabelecido do que fazer em situações como essa.

"O juiz manda uma ordem para a autoridade central do país, que manda uma ordem para a autoridade do outro país, que então comunica o juiz de lá e, então, o juiz do outro local manda cumprir. Isso é para não invadir jurisdição internacional", afirmou.

“Tem potencial de grande confusão. E se os juízes de todo lado começarem a fazer o mesmo? Existem instrumentos legais de cooperação e entendo que o ministro os driblou”, acrescenta.

O Facebook decidiu que não cumprirá a determinação de retirar do ar internacionalmente os perfis. A empresa informou que recorrerá ao plenário do STF e, enquanto isso, manterá as contas no ar fora do Brasil.

"Respeitamos as leis dos países em que atuamos. Estamos recorrendo ao STF contra a decisão de bloqueio global de contas, considerando que a lei brasileira reconhece limites à sua jurisdição e a legitimidade de outras jurisdições", afirma nota da assessoria de imprensa do Facebook.

Já o Twitter atendeu à decisão e bloqueou internacionalmente as contas alvo do inquérito. No entanto, classificou a ordem como desproporcional e anunciou que recorrerá da decisão de bloqueio.

De acordo com Francisco Brito Cruz, do InternetLab, a empresa tem pouca margem para recurso no confronto com Alexandre de Moraes.

“O Twitter pode recorrer no máximo ao próprio Supremo. Se o STF se pronunciasse definitivamente, ou seja, no plenário, não há foro internacional que tenha força de tornar inválida a decisão”, afirma.

"E se decidir desobedecer, estará desobedecendo uma ordem judicial válida, sendo passível de ser punido por isso."

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro como o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB), Sara Giromini (conhecida como Sara Winter), o blogueiro Allan dos Santos e os empresários Luciano Hang (da Havan) e Edgard Corona (das academias Smart Fit), alvos de investigação no âmbito do inquérito das fake news, tiveram suas contas suspensas no Twitter.

O inquérito investiga ameaças e disseminação de notícias falsas contra integrantes do STF nas redes sociais e representa um dos principais pontos de tensão entre o governo Bolsonaro e o Supremo.

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