Descrição de chapéu O que foi a Ditadura

Arte e cultura desafiaram os anos de chumbo ao propor, nas entrelinhas, novos modos de vida

Debate reuniu pesquisadores para falar sobre a vida cultural brasileira durante o período militar

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São Paulo

Além de instrumentos para documentar os 21 anos de ditadura militar no Brasil, a arte e a cultura foram estratégias de resistência. A repressão dos anos de chumbo censurou e perseguiu artistas e intelectuais, mas não foi capaz de sufocar por completo a vida cultural do período.

​Se por um lado reagiu à perda de direitos políticos, por outro a arte também desafiou a ordem estabelecida no momento em que propôs que novos modos de vida eram possíveis.

“Não era só a força de resistência a um projeto ditatorial, mas a possibilidade de sonhar e criar uma nova utopia”, descreve o professor de Literatura da Universidade de Pernambuco Acauam Oliveira, um dos participantes do debate sobre cultura e política que integra o festival virtual “Na Janela: O que foi a ditadura”, promovido pela Folha em parceria com a Companhia das Letras.

Exemplo dessa subversão, afirma, é o cantor e compositor Jorge Ben Jor. Rotulado de "alienado" até por setores de oposição aos militares, ele foi capaz de, nas entrelinhas, apontar futuros possíveis para uma identidade nacional em constante disputa.

Em versos como “por muito que eles queiram fazer mal a esse país, esse país continua abençoado por Deus e bonito por natureza”, de “País Tropical”, lançada em 1969, Ben Jor “canta um país que é uma imagem utópica, construída a partir da recuperação de uma cultura negra latente”, diz o pesquisador.

Segundo o escritor e compositor José Miguel Wisnik, um jovem estudante de Letras à época da ditadura, essas estratégias de duplo sentido e ironia foram ferramentas dos artistas especialmente após o decreto do AI-5, em dezembro de 1968, que instituiu formalmente a censura prévia.

Com essas brechas, eles queriam “manter viva a chama de cumplicidade e o imaginário político de resistência” que uniam diferentes setores críticos ao autoritarismo — desde camponeses até parcelas da classe média.

“Uma única frase era senha para um imaginário de consenso de oposição à ditadura”, explica Wisnik ao retomar canções como “Disparada” (1966), de Geraldo Vandré, que a certa altura diz “porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”.

“Os tropicalistas não gostavam de bater na tecla da censura, achavam mais astuto encontrar formas que, ao invés de eleger um antagonista, afirmavam novos modos de vida que se contrapunham à ditadura no campo político, sexual, da vida familiar e comunitária”, explica o músico, também professor aposentado da USP.

Para Acauam Oliveira, o compromisso político da música popular brasileira costurou o imaginário nacional e permaneceu como uma das lembranças desse período devido a uma junção de fatores.

“O que tornou possível esse alcance político da música engajada não foi apenas seu conteúdo. A popularização da MPB se vinculou de forma orgânica à popularização da televisão no Brasil e se beneficiou do momento de fortalecimento da indústria fonográfica.”

Além de janela para uma nova geração de artistas, outros fenômenos da televisão, como a telenovela, foram instrumento de oposição ao regime. Em “Herói mutilado: Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura” (Companhia das Letras, 2019), a colunista da Folha Laura Mattos abordou o tema.

Por chegar à casa de milhões de brasileiros e se consolidar como veículo de massa, a TV foi vista como arma para disputar corações e mentes, em especial da classe média. A jornalista brinca que, junto aos comunistas e ao governo militar, ela formou um “triângulo amoroso de alta voltagem”, em uma relação tensa e sempre mediada pela censura.

“A telenovela ficou no meio desse triângulo. Era considerada pela ditadura um canal importante de controle da identidade nacional; pelos comunistas, uma oportunidade de fazer críticas; e pela própria televisão como uma fonte de renda absurda”, explica.

Roque Santeiro, clássico exibido nos anos 1980, foi exemplo disso. A obra foi censurada em três momentos diferentes, primeiro em 1965, quando ainda estava adaptada apenas para o teatro; depois em 1975, no dia em que estrearia na Rede Globo, e finalmente em 1985, quando foi ao ar, mas com cortes.

“Essa obra mostra como é muito difícil romper com os mecanismos autoritários, e que a censura permaneceu, mesmo que achassem que estivesse encerrada”, diz Mattos.

Ainda segundo os painelistas, há paralelos entre a efervescência cultural do período militar e os dias de hoje. Para Acauam Oliveira, é possível afirmar que a produção está mais engajada que a dos anos 1970. O problema, explica, é que hoje outras plataformas disputam a hegemonia do discurso, principalmente a internet.

Nessa disputa, talvez a produção musical tenha perdido o poder de mobilização de grupos, mas não deixou seu caráter politizado e de defesa de valores democráticos.

O debate sobre cultura e política no período militar contou com mediação do jornalista Marcos Augusto Gonçalves, editor da Ilustríssima e autor de "1922 – A Semana que não terminou" (Companhia das Letras, 2012).​ ​

O festival “Na Janela: O que foi a ditadura” se encerra na quinta-feira (20), com o painel “As Várias Faces da Resistência”, que reúne o escritor e líder indígena Ailton Krenak, o ativista pelos direitos LGBTQI+ João Silvério Trevisan​ e o jornalista Oswaldo de Camargo. A mediação é do jornalista Ricardo Kotscho. A íntegra dos debates anteriores está disponível no YouTube da Companhia das Letras.

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