Deus vai trabalhar, não acredito em cassação e não desistirei da política, diz deputada Flordelis

Suspeita por morte do marido sonha com reeleição enquanto enfrenta processo que pode tirá-la da Câmara

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Rio de Janeiro

"Nos momentos mais difíceis, eu gosto muito de cantar", diz Flordelis dos Santos de Souza, 60. E suas canções servem de trilha para esta fase da vida.

Agora, poderiam ser versos como "o luto acabou/o sonho não morreu", de "O Sonho Não Morreu". Deputada federal, cantora gospel, pastora e, desde 2020, ré na Justiça do Rio de Janeiro, sob suspeita de mandar matar o marido, Flordelis (PSD-RJ) sonha com a reeleição.

"Quem me colocou na política foi Deus, e eu não vou desistir por que hoje eu tô passando por um período difícil", diz a candidata à Câmara mais votada pelos fluminenses em 2018.

Flordelis pensa num futuro mandato enquanto periga perder o primeiro. A deputada que em 2019 concorreu à presidência da bancada evangélica agora está na mão de seus pares, alvo de um processo no Conselho de Ética da Câmara que pode resultar em sua expulsão da Casa. "Não acredito nesta cassação, sinceramente não acredito. Acredito muito que Deus vai trabalhar em Brasília."

Em fevereiro, o Tribunal de Justiça do Rio chegou a pedir o afastamento da parlamentar, mas o Congresso ainda não se manifestou.

Flordelis conversa com a Folha no quarto onde, segundo ela, "ficava agarrada" com o marido sob a guarda de Romero Britto —um quadro do pernambucano, de um casal que abraça um coração, vigia a cama onde ela dorme só desde que Anderson do Carmo, pastor que nem ela, foi assassinado, em junho de 2019.

Ele tinha 42 anos e acabara de voltar com a esposa de um passeio. O laudo do Instituto Médico Legal constatou 30 perfurações de bala em seu corpo, nove delas na região de coxas e virilha.

Na medida em que as investigações avançavam, a imprensa ia recebendo retalhos de uma trama que, se Hollywood tentasse emplacar, pareceria forçada. Uma narrativa que envolve seita religiosa, sexo entre pais e filhos, casas de swing, plots prévios de assassinato, abuso sexual e uma batalha familiar por dinheiro.

'Quem sou eu?'

"Minha história tem seus altos e baixos/ De vitórias e alguns fracassos", entoa Flordelis em "Quem Sou Eu?". Ela é uma mulher criada por pais evangélicos na favela do Jacarezinho, uma das mais violentas da zona norte carioca.

Antes de frequentar o noticiário policial, foi aos programas de Ana Maria Braga e Marília Gabriela como exemplo de mãe modelo. Em 2002, Xuxa a entrevistou e, diante da mulher que sempre pareceu mais jovem do que é, decretou: "Fazer o bem é melhor do que plástica".

Chegou a estrelar um filme sobre sua própria história. O elenco, digno de novela global, tinha atores como Reynaldo Gianecchini e Cauã Reymond no papel de perigosos traficantes.

Fora os quatro filhos biológicos, Flordelis adotou mais 51, em sua maioria crianças de rua que diz ter abrigado após uma chacina na Central do Brasil. Hoje sete filhos e uma neta estão presos, acusados de tramar a morte de Anderson e, no caso de Flávio, apertar o gatilho.

A pastora conta que, por peitar chefes do tráfico para impedir execuções de jovens jurados de morte, ganhou a alcunha de Missionária do Comando Vermelho —a facção que comandava a área.

No Jacarezinho conheceu Anderson, 16 anos mais moço, um adolescente batista que logo viraria líder evangelizador. Vendia bananas desde criança, cresceu e fez carreira no Banco do Brasil. Mais tarde, arquitetou em volta do nome de Flordelis um império religioso.

"Era meu maior articulador político", ela afirma. Colegas do Congresso viam Anderson e Flordelis como um só. "Em Brasília", diz a viúva, "ele participava do futebol com os deputados".

A ideia de entrar na política, contudo, Flordelis diz que partiu dela. "Tive um sonho. Sou muito movida por fé. Estava sentada no meio fio, e uma voz mandava eu levantar e caminhar. O chão coberto de papéis. Um vento soprou nas minhas costas e começou a mexer com os papéis. Quando olhei pra baixo, era a minha foto com quatro números." A mesma quantidade de um candidato à Câmara.

Anderson costurou sua entrada no PSD, partido de Arolde de Oliveira. Magnata da comunicação gospel, após nove mandatos como deputado federal, Arolde se elegeu senador em dobradinha com Flávio Bolsonaro (Republicanos). Morto em 2020, de Covid-19, foi também patrão de Flordelis na gravadora MK, que removeu a artista de seu casting.

Em agosto, foi a vez da ministra Damares Alves, numa das lives presidenciais de Jair Bolsonaro, se distanciar da ex-aliada, alguém que para ela "enganou todo o Brasil". Já o presidente se disse aborrecido porque a primeira-dama Michelle aparecia em fotos com Flordelis que viralizaram na internet.

​'Volta por cima'

Rodeada de assessores, Flordelis dá esta entrevista como parte de sua tentativa de reabilitar a imagem e, quem sabe, fazer vingar a letra de "Volta Por Cima", um de seus hits: "Olham para mim, já julgando o meu final/ Esquecendo que o meu Deus é um Deus sobrenatural".

Esse caminho, contudo, é pedregoso. A barra do vestido longo esconde uma tornozeleira eletrônica, que usa por determinação judicial. Convencido de sua participação no homicídio, o Ministério Público do Rio pediu que ela seja submetida a um tribunal do júri.

A deputada se diz vítima de uma fábula de promotores e os acusa de trabalhar pela "desconstrução da imagem de Flordelis como ser humano, como pastora".

Como ao darem trela para um homem que diz ter morado com o casal e sido obrigado a passar por um "ritual de purificação" —teria ficado isolado num cômodo durante uma semana, vivendo à base de arroz e legumes e orando. No fim, teve de fazer sexo com Flordelis, segundo ele.

"Diziam que eu era uma seita, e não uma evangélica. Que eu era feiticeira. Se ter a fé inabalável em Deus é ser feiticeira, então eu sou", afirma Flordelis. "E sou mãe de 55, imagina eu tendo prática [sexual] com os mais velhos, que respeito teria deles? E meu marido era ciumento, me tratava como diamante, jamais permitiria ser tocada por alguém. Não sei nem por que veio parar no processo criminal."

Flordelis critica depoimentos anônimos acoplados ao inquérito. "Mereço que a investigação seja feita de forma correta. Que isso? Sem CPF, sem identidade, sem provas?" Partiu de um desses depoentes a hipótese de que Anderson e ela frequentassem casas de swing, inclusive no dia do crime.

Aos investigadores a deputada disse que ela e o marido teriam ido à orla de Copacabana naquela noite, feito juras de amor na praia e comido gurjão de peixe num restaurante. Câmeras que monitoram o trânsito, contudo, mostram que os dois estiveram num bairro vizinho na zona sul carioca, Botafogo, onde fica o tal estabelecimento que promove troca de casais.

Flordelis aponta um vale-tudo para manchar sua reputação. À Folha, sobre a última noite com o marido, fala que foi levada para um "lugar que até hoje não sei nem onde foi, esse lugar de praia onde só tinha carro".

Uma semana antes, porém, ao jornalista Pedro Bial, da TV Globo, tinha detalhado um passeio pelo calçadão de Copacabana. Após ser indagada a respeito, ela diz que de fato passou pelo bairro.

Questionada também sobre a passagem por Botafogo, responde: "Eu erro muito nessa questão de prestar atenção porque eu uso muito celular, joguinho" (gosta do "de bolinhas").

Polícia pede quebra de sigilo telefônico dos dois filhos da deputada Flordelis suspeitos da morte do pai, o pastor Anderson do Carmo. Na foto, Anderson e Flordelis. Foto TV Globo/Reproducao

Flordelis gasta alguns minutos para criticar reportagens que a pintavam como dona de uma coleção de perucas que chegariam a custar milhares de reais, da mesma marca das que a americana Beyoncé usa. Mais uma vez, diz, parte de um complô para ridicularizá-la.

Conta que Yvelise, viúva do senador Arolde, lhe deu a primeira cabeleira de mentirinha. "Não uso peruca como a mídia fala, de cabelos humanos caríssimos. Mas o que isso tem a ver com o assassinato?" A que adornava sua cabeça na última quarta (31) era sintética e custa R$ 200, emenda.

Dona Yvelise foi arrastada para o caso por outro motivo. Segundo a Polícia Civil, depois do crime, Flordelis usou o celular do marido para ligar para ela. A deputada diz que pode ter acontecido, mas que não se lembra, pois estava muito abalada na época. "Tive apagão. A ciência explica isso, passei por um trauma grande e uma sedação forte."

Em depoimento, Yvelise chamou a ex-contratada da MK de "dissimulada e perigosa"

'A Voz do Silêncio'

Em "A Voz do Silêncio", Flordelis sugere: "Tem horas que a melhor resposta é ficar calado/ Deixar que a voz do silêncio fale por você". Ela decidiu, contudo, que é hora de apresentar sua versão dos fatos. Para conversar com a deputada, a repórter antes teve que falar com a assessoria jurídica dela.

Duas semanas antes, Flordelis chorou no Conselho de Ética. Na terça (30), Bárbara Lomba, primeira delegada responsável pelo caso, foi ouvida pelo comitê. Afirmou crer que "a motivação final [para matar Anderson] certamente passa por poder, provavelmente também dinheiro".

Lomba também disse que não havia "uma ordem explícita da deputada para a execução". O que depoimentos mostram é Flordelis dizendo "que não aguentava, que isso tinha que ser resolvido de alguma forma", sobre uma situação limite com o marido.

"Até quando vou ter de suportar esse traste?", dizia mensagem enviada para um filho pelo celular da pastora e obtida pelos investigadores. Flordelis afirma que o acesso a seu smartphone sempre foi liberado para assessores e filhos.

Suspeita-se que já em 2018 Anderson tenha sido alvo de investidas para eliminá-lo, com comida envenenada. Ele passou por hospitais no período, com episódios de vômito e diarreia.

A expectativa de ser inocentada aumentou após uma filha biológica, Simone, ter admitido, em janeiro de 2021, ser a cabeça do atentado. Ela disse à polícia que pagou uma irmã, a Marzy, para orquestrar o homicídio cometido um ano e meio antes, na garagem da casa em Niterói (RJ) onde Flordelis mora até hoje com parte da prole, o mais novo com 4 anos. Não sabe precisar quantos são, e a assessora diz 25, entre filhos e netos.

Marzy chegou a fazer buscas na internet como "assassino onde achar" e "alguém da barra pesada", de acordo com a investigação. Filha biológica de Flordelis, de uma relação anterior à com Anderson, Simone contou que era sexualmente abusada pelo padrasto, daí querer matá-lo com ajuda de irmãos.

A mãe nega que a filha tenha assumido a autoria para acobertá-la, hipótese levantada. "Eu jamais ensinaria meus filhos a mentirem." Afirma que Simone teve 35 tumores desde 2012, um câncer de pele que se espalhou pelo organismo. "Foram duas descobertas duras", segundo Flordelis: saber que a filha era abusada até mesmo ao voltar da quimioterapia, e pelo homem que amava.

"No momento que ela mais precisava de mim, eu não enxerguei", diz e chora. "Nós acreditávamos no cristianismo do meu marido." Pausa a conversa para chorar.

'Deus no controle'

Flordelis não vai mais aos cultos da bancada evangélica, hoje feitos pelo Zoom por conta da pandemia. Cita "pastores que decidiram me incriminar antes mesmo de ser julgada".

Em 2019, chegaram a circular em grupos de evangélicos no WhatsApp memes zombando o suposto envolvimento da deputada na morte de Anderson. Uma imagem com a foto dela oferecia a "palestra do ano: como colocar seu marido nos braços de Jesus".

No fim da entrevista, uma assessora pede que Flordelis reforce: se o suposto crime que cometeu não tem relação com o mandato, e sequer há uma sentença proferida, por que ser processada pelo Conselho de Ética?

"Nem era para eu estar lá. Não cometi nenhum decoro parlamentar. A minha filha já confessou", afirma a ré que imposta a voz no louvor "Deus no Controle": "Não há caso impossível para o Seu Senhor".

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