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Supremo tem coerência desafiada com ações sobre Lei de Segurança Nacional

Declarar inconstitucional trechos já usados pelo STF em inquéritos contra bolsonaristas pode indicar contradição

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São Paulo

Ao julgar se a LSN (Lei de Segurança Nacional) seria ou não compatível com a Constituição de 1988, o STF (Supremo Tribunal Federal) tem diante de si o desafio de manter a coerência de suas decisões, dado o uso que a própria corte tem feito da lei nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos.

Em análise feita em reservado à Folha, ministros do Supremo indicaram que anular a legislação integralmente deixaria a corte desprotegida e que eles avaliam excluir trechos usados pelo governo Bolsonaro para perseguir críticos mas manter outros artigos usados pelo tribunal.

Um dos artigos com maior chance de ser excluído seria o 26, que fixa pena de um a quatro anos de prisão para quem caluniar o chefe de um dos Três Poderes e que foi usado pela família Bolsonaro contra o youtuber Felipe Neto.

Esse mesmo artigo, entretanto, foi utilizado pelo ministro Alexandre de Moraes (STF) em mais de uma oportunidade, sendo uma delas a da prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) —decisão que depois foi referendada pelo plenário do tribunal.

O relator das ações que tratam do tema da LSN é o ministro Gilmar Mendes. Ele pode liberar os processos para julgamento do plenário ou dar uma decisão individual antes e só depois remeter o caso para análise do conjunto da corte.

Nesta segunda-feira (5), Gilmar deu cinco dias de prazo para que o Ministério da Justiça dê explicações sobre o uso da lei contra críticos do governo.

Também a Polícia Civil do Rio de Janeiro e as Polícias Militares do Distrito Federal e de Minas Gerais deverão prestar informações, todas elas estiveram envolvidas em casos recentes envolvendo a lei.

A decisão foi tomada diante de habeas corpus da DPU (Defensoria Pública da União) em favor de pessoas processadas, investigadas ou ameaçadas de investigação, com base na LSN, por manifestação de opinião política ou por, em tese, terem cometido crime contra a honra do presidente ou outros agentes públicos federais. Na ação, a DPU pede trancamento dos inquéritos e ações que tenham sido abertos nestes casos.

Parte dos advogados e professores de direitos consultados pela Folha avaliam que, ainda que tecnicamente possível, denotaria incoerência caso a corte venha a declarar inconstitucional um artigo que ela mesma usou.

Quem discorda deste posicionamento argumenta que o tribunal fez uso da lei porque ela está em vigor e que os ministros só poderiam avaliar a constitucionalidade da norma se provocados.

Com isso, o fato de o STF ter utilizado trechos da LSN não necessariamente indicaria que os ministros teriam avaliado sua constitucionalidade.

Também há quem ressalte que, apesar de problemático, o uso da LSN pelo Supremo seria consequência da inexistência de uma lei que defenda o Estado democrático de Direito.

Em março, quatro ações foram protocoladas no Supremo questionando se essa legislação, gestada em 1983, no fim da ditadura militar, seria ou não compatível com a Constituição de 1988.​

Duas das ações pedem que a legislação seja completamente suspensa. Outras duas pedem que apenas parte da lei seja invalidada e que parte dos artigos tenham suas aplicações limitadas pelo STF.

As ações que pedem a suspensão parcial da lei são vistas por parte dos entrevistados como um modo de resguardar o Supremo e as instituições.

Caso a LSN seja declarada inconstitucional em sua totalidade, investigações baseadas apenas nela seriam arquivadas, e as ações penais, extintas. Já no caso de parte da lei ser mantida, investigações baseadas nestes trechos poderiam continuar.

Para Diego Nunes, professor de teoria e história do direito da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), o fato de o Supremo estar utilizando trechos da lei, inclusive o artigo 26, indicaria que tais artigos tendem a ser considerados constitucionais pela corte.

No entanto, ele mesmo faz a ressalva de que não deveria causar surpresa caso o Supremo declare parte deles inconstitucionais.

“No julgamento o STF vai poder chegar a surpreender todo mundo dizendo o seguinte: ‘Não, ali a gente estava fazendo uma aplicação contingencial, porque a gente presumia a constitucionalidade, agora que pediram para que a gente olhe a lei como um todo a gente vai olhar e vai modificar esse todo’”, exemplificou o professor.

Também para a professora de direito penal Raquel Scalcon (FGV), o simples fato de o Supremo utilizar a lei é significativo.

“Ela sempre foi objeto de polêmica, mas agora ficou muito mais intenso, então, se o Supremo usa alguns artigos dessa lei e não diz, não analisa e não questiona se são compatíveis com a Constituição, acho que está subentendido que seriam [constitucionais], à luz daquela composição [do tribunal], naquele momento.”

“Acho que alguns usos da lei pelo próprio Supremo são questionáveis e que esse é o momento de o Supremo enfrentar isso. Eles vão ter um desafio de coerência. Desafio de compatibilizar a lei com a Constituição Federal e de coerência com o que vêm decidido até agora.”

Apesar de concordar que pode haver contradição em caso de mudança de posicionamento, o professor de direito penal da PUC-RS Alexandre Wunderlich sustenta que as citações aos dispositivos foram genéricas.

“Não se discutiu, no caso concreto, a constitucionalidade individualizada de cada dispositivo. Até a declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, [por exemplo] ela vinha sendo utilizada para direito de resposta.”

A advogada e conselheira federal da OAB Daniela Teixeira não vê contradição caso o STF declare inconstitucionais artigos que tenha utilizado.

“Ele usou a legislação que estava em vigor, não havia pedido de que se declarasse [a LSN] inconstitucional. E, agora que ele vai examinar se a legislação é compatível ou não com a Constituição, ele pode pensar diferente.”

A professora de direito constitucional Tayara Lemos, da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), também não vê contradição. "O STF não podia decidir por conta própria declarar inconstitucional uma lei, sem que um dos legitimados para propor uma ação de controle de constitucionalidade o fizesse."

Para ela, ao declarar a inconstitucionalidade da lei integralmente, o Supremo estaria considerando o contexto de abuso no uso da LSN e também reconhecendo tal declaração como elemento de Justiça de transição. "Simbolicamente vai representar que o STF está acompanhando a democracia."

"Se o STF reconhecer que a LSN não foi recepcionada [pela Constituição], toda persecução penal que tenha fundamento exclusivo nessa legislação deve ser arquivada", afirma Gabriel Sampaio, advogado e coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos.

Além disso, de acordo com os especialistas, em ações de controle de constitucionalidade o tribunal tem uma certa abertura para sua decisão. Com isso, o STF poderia, por exemplo, buscar alguns argumentos em uma ação, mas também reconhecer parte dos pedidos das demais.

Tanto o inquérito das fake news quanto o dos atos antidemocráticos investigam se foram cometidos crimes previstos na LSN. No entanto, como as apurações correm em sigilo, não é possível saber por quais artigos cada pessoa é investigada —seja da LSN ou de outra lei.

Irapuã Santana, doutor em direito processual pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), acredita que o Supremo não vai declarar inconstitucionais trechos da lei que ele tenha usado.

“Não faz sentido você ter o questionamento da constitucionalidade desses inquéritos, referendar a constitucionalidade desses inquéritos e depois acabar com o fundamento onde eles se construíram.”

Santana avalia também que o tribunal, em alguns julgamentos do inquérito das fake news, já traçou diferenciações do que seria ameaça ao exercício dos Poderes e direito à livre expressão. Ele é crítico, entretanto, às balizas que foram traçadas pelo STF até o momento.

Na denúncia oferecida pela PGR (Procuradoria-Geral da República) contra o deputado Daniel Silveira foram elencados apenas dois artigos da LSN, o 18 e o 23. Já na decisão de Moraes, de prisão em flagrante, constavam cinco artigos da lei: 17, 18, 22, 23 e 26.

Destes artigos, as ações que pedem a suspensão de parte da LSN questionam, na íntegra, o artigo 26 e, parcialmente, o 22 e o 23.

A primeira ação, pedindo suspensão integral da LSN, foi protocolada em 3 de março pelo PTB e cita a prisão de Silveira, a que se refere como ilegal, e a abertura do inquérito dos atos antidemocráticos, que diz ser inconstitucional.

O presidente da sigla, Roberto Jefferson, foi alvo de busca e apreensão e chegou a ter suas redes sociais bloqueadas no inquérito das fake news. Na ação, o partido sustenta que a lei é incompatível com o Estado democrático de Direito.

No dia seguinte, em 4 de março, o PSB ingressou com ação pedindo a suspensão parcial e que outros artigos da LSN passassem a ter interpretação limitada, de modo a coibir usos abusivos da lei ou que cerceiem a liberdade de expressão.

A intimação do youtuber Felipe Neto por ter chamado Bolsonaro de genocida ocorreu em 15 de março. Na sequência, em 21 de março, o PSDB ingressou com ação também requerendo a suspensão integral, mas solicitando que o Supremo determine ao Congresso que edite uma lei de defesa do Estado democrático de Direito em prazo a ser fixado, sob pena de suspensão da eficácia da atual legislação.

Já a ação conjunta de PT, PSOL e PC do B pede, assim como o PSB, suspensão parcial, mas com algumas diferenças entre os pedidos.

A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

Entenda as origens, o seu uso atual e as propostas para modificá-la ou revogá-la

A LEI

Tendo sua última versão editada no estertores do regime militar (1964-1985), em 1983, é uma herança do período ditatorial, sendo um desdobramento de legislações anteriores, mais duras, usadas contra opositores políticos.

O QUE HÁ NELA

Com 35 artigos, estabelece, em suma, crimes contra a "a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a federação e o Estado de Direito e a pessoa dos chefes dos Poderes da União".

Traz termos genéricos, como incitação à subversão da ordem política ou social" e artigos anacrônicos, como pena de até 4 anos de prisão para quem imputar fato ofensivo à reputação dos presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado.

EXEMPLOS DE APLICAÇÃO NOS DIAS DE HOJE

  • O procurador-geral da República, Augusto Aras, usou a lei para pedir ao STF a abertura de inquérito para apurar atos antidemocráticos promovidos por bolsonaristas, com o apoio do presidente da República

  • O Ministério da Defesa usou a lei em representação contra o ministro do STF Gilmar Mendes, que havia declarado que o Exército estava "se associando a um genocídio" na gestão da pandemia

  • O ministro da Justiça, André Mendonça, usou a lei para embasar pedidos de investigação contra jornalistas, entre eles, o colunista da Folha Hélio Schwartsman, pelo texto "Por que torço para que Bolsonaro morra", publicado após o presidente anunciar que havia contraído a Covid-19

  • O ministro Alexandre de Moraes (STF) usou a lei para embasar a prisão do bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ).

​PROPOSTAS DE MUDANÇA OU REVOGAÇÃO

Há em tramitação na Câmara 37 projetos de lei que alteram ou revogam a lei, entre elas a de substituição por uma Lei de defesa do Estado democrático de Direito em que seria punido, entre outras ações, a apologia de fato criminoso ou de autor de crime perpetrado pelo regime militar (1964-1985)

AÇÕES QUESTIONANDO A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI

  • ADPF 797 (PTB) pede que a lei em sua íntegra seja declarada não compatível com a Constituição
  • ADPF 815 (PSDB) pede que a lei seja suspensa na íntegra, e que o Supremo determine ao Congresso Nacional que edite uma lei de defesa do Estado Democrático de Direito em prazo a ser fixado, sob pena de suspensão da eficácia da atual legislação
  • ADFP 799 (PSB) e ADPF 816 (PT PSOL e PCdoB) pedem que apenas parte da lei seja declarada não compatível com a Constituição
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