Descrição de chapéu Folhajus

Escritora enfrenta tentativa de censura por livro de ficção sobre 'TJ de Santa Ignorância'

Juiz acusa advogada catarinense de se inspirar nele, o que ela nega; associação e Promotoria são mobilizadas para remoção da obra

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Mogi das Cruzes (SP)

Floribaldo Mussolini é um juiz especial cível do Tribunal de Justiça de Santa Ignorância, na República Federativa da Banalândia. Personagem do livro de ficção “Causos da Comarca de São Barnabé”, da advogada catarinense Saíle Bárbara Barreto, sua criação motivou a abertura de processos na esfera cível e criminal numa tentativa de censura à autora.

Rafael Rabaldo Bottan, que é juiz especial cível em São José —município da região metropolitana de Florianópolis onde também vive a escritora— acusa Saíle de ter criado Floribaldo, segundo ele um trocadilho com seu sobrenome, para humilhá-lo por discordar de suas decisões.

Apesar de não ser citado na obra, Bottan diz que mensagens da advogada no ano passado na página “Diário de uma advogada estressada”, criada por ela no Facebook em 2017 e que tem mais de 100 mil seguidores, seriam uma prova de que o livro foi inspirado nele, o que a autora nega.

Uma mulher loira segurando um livro com capa verde
A advogada e escritora Saíle Bárbara Barreto com o livro "Causos da Comarca de São Barnabé" - Divulgação

O questionamento veio logo após Saíle publicar os primeiros trechos de seu quinto livro, em dezembro. Em fevereiro, ela disponibilizou a obra na Amazon e fez a primeira impressão do livro por meio de sua editora.

À Folha Saíle diz ter sido “marcada” pelo juiz por ter feito uma reclamação à Corregedoria de Justiça contra ele, em 2018, em razão de uma movimentação em bloco de processos.

No ano passado, ela reclamou nas redes de uma decisão desfavorável do magistrado, que havia reduzido o valor de um processo, acusando o juiz de agir por vingança.

Por escrito, Bottan disse à reportagem que não houve nada anormal na decisão e que foi no dia seguinte à negação do recurso apresentado por Saíle que o livro sobre a comarca de São Barnabé, “esquecida por Deus (e pela Corregedoria)”, foi anunciado.

“Mesmo que a advogada diga que é puramente ficção, que o personagem do livro é apenas uma coincidência, não há como acreditar que não houve dolo em sua criação, com claro intuito de zombar da minha pessoa, vingar sua perda processual com o escárnio e humilhação”, afirma Bottan.

“Ele deve ser paranóico”, diz Saíle, que afirma nunca ter visto o juiz.

Na ação cível, segundo a advogada, o magistrado pede a remoção de posts nas redes sociais e do livro da plataforma de publicação, que a escritora não possa publicá-lo fisicamente e nem voltar a fazer outras obras satíricas sobre o Judiciário. Bottan pede ainda R$ 100 mil de indenização por danos morais.

A advogada Deborah Sztajnberg, que defende Saíle, classifica o processo como absurdo e diz que as crônicas escritas por ela falam sobre situações que acontecem em todo o país.

Ela defendeu o pesquisador Paulo César de Araújo, processado por Roberto Carlos por ter lançado uma biografia não autorizada sobre o cantor. “A maioria dos juízes do Brasil são que nem o Roberto Carlos e se sentem acima do bem e do mal”, diz.

Ela afirma que a obra não é uma biografia nem traz informações sobre o juiz. “Se você se reconhece no espelho, não é problema de ninguém”, completa.

​Para tentar responsabilizar Saíle na esfera penal por calúnia, injúria e difamação, Bottan acionou a AMC (Associação dos Magistrados Catarinenses), que fez uma representação ao Ministério Público do estado em que relaciona o histórico de postagens feitas por Saíle com o livro.

“A advogada Saíle Bárbara Barreto há meses tem publicado textos apresentados como fictícios, mas que são evidentes ofensas, calúnias e difamações contra o juiz”, diz a associação, que afirma atuar quando há ofensa às prerrogativas da magistratura, com suporte jurídico para os juízes perseguidos e ofendidos por sua atuação profissional.

A argumentação da AMC foi aceita pela Promotoria, que apresentou denúncia contra a autora em janeiro. O processo tramitou inicialmente em sigilo, conforme pedido pela associação, por incluir a cópia da representação feita pela advogada junto à corregedoria.

A defesa da escritora recorreu para que o processo fosse encaminhado ao STF por causa do envolvimento da associação. “Eu estou me sentindo uma bruxa na inquisição. Eles estão me processando e vão me julgar”, diz Saíle.

O juiz da 3ª Vara Criminal de Florianópolis Andre Luiz Anrain Trentini negou o recurso e determinou que a menção à AMC seja retirada da capa do processo.

Saíle diz que soube das ações por uma seguidora e que o Ministério Público solicitou à Justiça que ela fosse obrigada a remover a publlicação que havia feito sobre o processo, sob pena de multa diária e prisão preventiva, em caso de descumprimento da ordem judicial.

Segundo o promotor de Justiça Geovani Werner Tramontin, o objeto da denúncia são as publicações em redes sociais feitas por Saíle. Ele afirma que pediu a quebra do sigilo do processo, já feita, para que todos possam ter acesso e tirar as próprias conclusões.

O Ministério Público diz ainda que Tramontin tem “o maior respeito pela liberdade de expressão, mas tê-la implica em ter responsabilidade” e nega que tenha solicitado a prisão da escritora, que consta na manifestação feita à Justiça no dia 05 de fevereiro.

Tanto na esfera cível quanto na penal, houve ordem judicial para retirada de 47 postagens da página de Saíle no Facebook, mas não de seu livro. A escritora conta que sua página tem recebido denúncias gerando bloqueios a publicações e dificultando o impulsionamento de conteúdos.

Na esfera penal, o juiz também acolheu o pedido do Facebook, que havia se manifestado para que fossem indicadas as URLs que deverão ser removidas das redes de Saíle.

A empresa afirmou que havia posts indicados para exclusão fora do critério determinado pela Justiça que a "liberdade de expressão é um princípio norteador do uso da internet e um direito fundamental dos usuários".

O Facebook também citou a previsão do Marco Civil da Internet, que determina que a ordem judicial "deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material".

Processo mistura coisas distintas, diz advogado

Hélio Brasil, advogado de Saíle no processo penal, diz que a acusação mistura coisas distintas. “Uma coisa é o descontentamento dela com a atuação do juiz, mas isso não tem nada a ver com o livro”, diz.

Ele afirma que o caso é inédito no estado e que espera a absolvição sumária, pois tem certeza que nenhum delito foi cometido pela escritora.

"Já atuamos em muitos casos de injúria, calúnia e difamação, mas nesses termos não. Tentar colocar uma obra de ficção literária como se estivesse imputando algum crime contra a honra a alguém, e não é o caso.”

O professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP e advogado criminalista Pierpaolo Bottini afirma que a sátira não deve ser objeto de censura e que a legislação garante a liberdade de expressão por meio da obra ficcional.

“Nem nos momentos mais autoritários do nosso sistema político a gente viu censura de obras de ficção. Quantas obras de ficção que não têm ou que não tinham um fundo crítico ou uma forma velada de atacar as autoridades públicas? Isso não dá direito a ninguém de se colocar no lugar do ofendido.”

Bottini acrescenta que, se a escritora cometeu algum crime contra a honra do juiz, caberia uma queixa-crime pelas publicações. “Você contaminar a obra ficcional dela e fazer essa relação não me parece possível”, afirma.

A OAB de Santa Catarina e o Instituto dos Advogados do estado pediram para acompanhar o processo como amicus curiae (amigo da corte, chamado a opinião sobre o processo) para defender prerrogativas da advocacia, a livre manifestação e a liberdade de expressão.

“Cabe ao magistrado [Bottan] comprovar que houve algum excesso a ponto de se relativizar esses princípios e prerrogativas que são tão caras ao Estado de Direito e à sociedade”, disse o presidente da OAB, Rafael Horn.

Saíle afirma que também tentou apoio junto a OAB-nacional, mas sem sucesso. “Para mim nota de repúdio e desagravo não valem nada. Eu queria que eles fossem ao CNJ [Conselho Nacional de Justiça] reclamar da perseguição que estou sofrendo por esse juiz.”

A advogada conta que começou a escrever textos de humor sobre o meio jurídico em 2013, a convite de um magistrado de Florianópolis, e que sempre teve boa aceitação do público, que tem manifestado apoio diante do caso. A União Brasileira de Escritores também divulgou nota a favor de Saíle.

“Esse apoio estou tendo, mas mesmo assim é muito difícil. É uma situação que eu não imaginava passar. É uma angústia bem grande", diz Saíle, que afirma ter tido uma crise grave de estresse depois dos processos.

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