Em reunião, virologista sugeriu a Bolsonaro criar 'gabinete da sombra' contra Covid

Recomendação feita por Paolo Zanotto reforça suspeita de 'ministério paralelo' investigado na CPI

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São Paulo

Em reunião com especialistas da área de saúde em 2020, o presidente Jair Bolsonaro recebeu a sugestão de criar uma espécie de “gabinete das sombras” para tratar da resposta oficial à pandemia da Covid-19.

O presidente Jair Bolsonaro ao lado do ex-ministro Osmar Terra (à esq.) e do virologista Paolo Zanotto (ponta esquerda), durante reunião no ano passado no Palácio do Planalto sobre Covid-19 - Reprodução Facebook Jair Bolsonaro

A proposta foi feita pelo virologista Paolo Zanotto, segundo vídeo divulgado pelo site Metrópoles.

“Talvez fosse importante montar um grupo, e a gente poderia ajudar a montar um ‘shadow board’, como se fosse um ‘shadow cabinet’. Esses indivíduos não precisariam ser expostos à popularidade”, declarou Zanotto na reunião, ocorrida no Palácio do Planalto.

A fala de Zanotto, um dos especialistas que vêm aconselhando Bolsonaro desde o começo da crise, reforça a suspeita de que haveria uma espécie de “ministério paralelo” lidando com a Covid-19, fora da estrutura oficial da pasta da Saúde.

O vídeo refere-se a uma reunião ocorrida em setembro do ano passado e foi transmitido pela página do presidente no Facebook.

Na quinta-feira (3), reportagem da Folha mostrou como lives de aliados de Bolsonaro detalharam a suposta atuação do "gabinete paralelo" que assessora o governo federal no combate à pandemia da Covid-19.

Apontado como idealizador do grupo, o ex-assessor da Presidência Arthur Weintraub estimou em cerca de 300 o número de pessoas aconselhando Jair Bolsonaro quanto ao uso da hidroxicloroquina.

Detalhes da concepção e funcionamento desta estrutura, à margem do Ministério da Saúde, são descritos em duas lives realizadas entre Weintraub e o anestesista Luciano Dias Azevedo, um dos médicos mais influentes entre defensores do chamado “tratamento precoce” contra a Covid.

Na transmissão de setembro de 2020, Bolsonaro aparece rodeado por integrantes da suposta equipe “paralela” de especialistas.

Em geral, são defensores do chamado “tratamento precoce” contra a doença, uma estratégia sem eficácia para lidar com a pandemia e que apresenta riscos de efeitos colaterais. Também divergem da estratégia de distanciamento social e relativizam a importância da vacinação.

No vídeo, Zanotto pede ao presidente que lidere essa equipe alternativa. “Presidente, o sr. tem uma tropa aqui de leões. E os leões precisam ser guiados por um leão também”.

Em seguida, o virologista levanta dúvidas as vacinas, que àquela altura estavam em desenvolvimento.

“Com todo respeito, é lógico que a gente tem que ter vacina. Ou talvez não, porque o grande problema dos coronavírus é que eles têm, intrinsicamente, problemas no desenvolvimento vacinal”, alerta o especialista.

Ele diz ainda que enviou uma carta com a proposta de criação de um grupo para Weintraub, atualmente trabalhando na OEA (Organização dos Estados Americanos), em Washington (EUA).

À Folha Zanotto afirmou que fez uma analogia com o “shadow cabinet” britânico, formado pela oposição, e que opera às claras e dentro da lei.

“O que estava sendo proposto era montar um grupo dos melhores vacinologistas e imunologistas do Brasil para darem apoio ao governo na avaliação de propostas de vacinas”, afirmou.

Ele diz que o vídeo distorce sua posição ao dar a impressão de que ele é contra vacinas. “Desde março daquele ano eu estava num grupo que estava trabalhando no desenvolvimento de vacina aqui em São Paulo”, afirmou.

Segundo o virologista, vacinas para vírus anteriores, como o Sars-Cov 1 e o Mers tiveram reação na fase pré-clínica, quando são testadas em animais, e por isso ele recomendou precaução. Ele disse ainda que o “shadow cabinet” nunca foi criado, e que aquela foi a única vez em que esteve com Bolsonaro.

No vídeo da reunião no Palácio com os especialistas, Bolsonaro aparece ao lado deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), uma espécie de eminência parda do presidente na estratégia para combater a pandemia.

Terra é um defensor assumido da chamada “imunidade de rebanho”, segundo a qual a pandemia desaparecerá em razão do ritmo acelerado da contaminação da população.

Ele é descrito por uma pessoa não identificada como “nosso padrinho”. Em um dos trechos, Terra refere-se a uma pessoa na plateia que seria especialista em cardiologia, que asseguraria a falta de risco para quem usa hidroxicloroquina.

“Temos um especialista em arritmia cardíaca, presidente, e ele é o primeiro a dizer que não tem problema usar hidroxicloroquina”, afirma Terra.

No vídeo, aparecem também outros médicos, como Nise Yamaguchi, que foi ouvida nesta semana pela CPI da Covid, no Senado.

Em reação à divulgação do vídeo, o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), diz que confirma a existência da estrutura alternativa.

“O vídeo que vazou hoje confirma a tese do gabinete paralelo e explica por que o ministro Pazzuello dizia que a vacinação iniciaria no dia D, na hora H. Ele esperava as determinações do “shadow cabinet”, o gabinete da morte”, afirmou.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da CPI, disse que há uma "prova definitiva da existência do gabinete paralelo". Ele disse que convocará Osmar Terra e Zanotto para comparecer à comissão.

Zanotto diz que irá, caso convocado, e que não pretende pedir habeas corpus ao Supremo Tribunal Federal.

Nesta sexta (4), Randolfe publicou em redes sociais que o governo Bolsonaro ignorou 53 emails da Pfizer, que negociava a oferta de vacinas contra a Covid. No último dia 31, ele dizia já ter conhecimento de 41 emails como esses em nove meses.

"O último datado de 2 de dezembro de 2020, é um email desesperador da Pfizer pedindo algum tipo de informação porque eles queriam fornecer vacinas ao Brasil", escreveu.

"Essa omissão na aquisição de vacinas da Pfizer acontecia ao mesmo tempo que o nosso Itamaraty pressionava a Índia para liberar cargas de hidroxicloroquina a uma empresa brasileira", disse.

Reportagem da Folha há duas semanas mostrou que, em um único, mês, o governo ignorou 10 emails da farmacêutica.

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